Bíblia – mística, literatura, arte, beleza
Padre João Medeiros Filho
Em 1947, após a promulgação da Encíclica “Mediator Dei”, surgiram movimentos de valorização da Bíblia. Em 1971, homenageando São Jerônimo – cuja festa litúrgica se celebra em 30 de setembro – a Igreja Católica dedicou esse mês à Sagrada Escritura. Ele foi o primeiro tradutor dos textos originais para o latim, cuja tradução é conhecida como Vulgata. A Bíblia é revelação divina, mas também prece e literatura. No tratado “Doctrina Christiana”, Santo Agostinho equiparou os escritos bíblicos à excelência literária dos textos clássicos. Ali, assevera que a mensagem espiritual é enunciada numa beleza estética. Para o Bispo de Hipona, “a Escritura é fonte de experiência religiosa e escola de oratória e escrita.” Na sua época, quem desejava conhecer a elegância dos estilos e gêneros literários, deveria beber na tradição retórica, descritiva e poética, presente nos Textos Sagrados. A verdade bíblica é transcendental. Todavia, é indissociável de um belo suporte linguístico, pois fé e linguagem esmerada se completam. A condição teológica da Bíblia é inseparável da natureza literária. Desde os tempos mais remotos, há uma nítida consciência da perenidade da Palavra Divina. Assim se expressa o profeta Isaías: “As folhas secam e as flores murcham, mas a Palavra do Senhor permanece para sempre” (Is 40, 8). Muitos autores, não teólogos ou exegetas, têm contribuído para aprofundar o conhecimento e o amor à Sagrada Escritura. Em seus estudos literários, descobrem a sublime qualidade dos relatos bíblicos. Dentre eles, destaca-se Erich Auerbach com a obra “Mímesis”. Nela, reconhece os dois paradigmas fundamentais da literatura mundial: a Odisseia e a Bíblia. Afirma que as narrações bíblicas contêm uma profunda intencionalidade artística e acentuada concepção harmônica do humano e sobrenatural. Estudiosos das formas literárias (Formgeschichte) vêm elaborando excelentes trabalhos, incentivando a leitura e proporcionando uma melhor compreensão do Livro Sagrado. Descrevem como Jesus levou seus compatriotas a ter mais consciência da vida interior e preocupar-se menos com a aparência exterior. Em “De profundis”, Oscar Wilde relata a seguinte experiência: “No Natal, consegui um exemplar do Novo Testamento e todas as manhãs, depois de limpar a cela da prisão e lavar os pratos, lia vários versículos dos Evangelhos. Era uma deliciosa maneira de começar o dia, enchendo-me de luz e paz.” Com o decorrer do tempo, foram se perdendo a beleza e o encanto dos Evangelhos, proclamados de forma inadequada ou apressada. Debruçar-se sobre eles é como entrar num jardim de orquídeas e rosas perfumadas, depois de sair de uma casa estreita e escura. Ali, o leitor poderá encontrar as principais realidades da vida: mistério, tristeza, amor, súplica, solidariedade, perdão, ternura, êxtase etc. A sua leitura desperta um sentimento no qual se percebem a poesia e a sublimidade da Palavra de Deus. Os textos bíblicos inspiraram renomadas obras artísticas, em suas variadas formas, criadas ao longo dos séculos: as catedrais, como a de Chartres, pinturas como as de Giotto, a Divina Comédia, de Dante Alighieri, esculturas de Michelangelo, músicas sacras e clássicas etc. Dentre os autores brasileiros mais recentes, influenciados pela Sagrada Escritura, poder-se-ia elencarJorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Adélia Prado, Rubem Alves etc.Basta folhear a Bíblia com um pouco mais de interesse para verificar o que escreveu William Blake: “Ela é o grande código da arte ocidental.” Por sua vez, o poeta Claudel a considera “o imenso vocabulário, pois nela, e às vezes só nela, apreende-se a misteriosa, difícil e interminável arte de narrar e escrever.” O pintor Chagall denomina a Escritura de “atlas iconográfico”, pois tantas imagens ali contidas se fixam em nossa mente e mergulham em nossos sonhos. A Bíblia é também tesouro e patrimônio cultural da humanidade. Uma literatura construída por místicos, poetas religiosos, cronistas, hagiógrafos, cantada ou recitada durante séculos, antes de ser escrita. Ela é tecida de vocábulos que envolvem o mistério e registram os rastros do sopro divino, uma presença silenciosa, atingindo o nosso âmago. Por isso compreende-se o arrebatamento do profeta Jeremias: “Mal encontrei as Tuas palavras, e já as devorava. Elas se tornaram para mim prazer e alegria do coração” (Jr 15,16).