sexta-feira, 17 de março de 2023

 

INVENTÁRIO DOS BENS ESSENCIAIS

 

Valério Mesquita

Mesquita.valerio@gmail.com

 

Vivo o desconforto e a nostalgia de mim mesmo ao me deparar com o sonho dos meus vinte anos que a idade madura não confirmou. Sinto-me disperso, irrealizado, quando retorno às minhas origens telúricas. A meta de trazer o passado ao presente, reconstruí-lo pela palavra e pensamento a fim de reconquistar a minha auto-estima, parece-me uma tarefa hercúlea porque constato que o personagem não sou eu mas, sobretudo, o tempo. Deduzo que, precisaria recriar os fatos e renascer as pessoas. Verifico que sou o resultado de todas as convivências e acontecimentos afins do passado. Por isso, o vácuo e a irritação me arrastam ao entendimento inconcluso de que tudo foi ilusão e fantasia, ou infecção sentimental.

Mas, o patrimônio existencial da terceira idade, onde a memória olfativa, a auditiva e, principalmente, a visual, procuram restituir-me o universo perdido das fases inaugurais da vida. Aquela lua cheia, por exemplo, vista do cais do rio Jundiaí em Macaíba, como se estivesse pendurada por fios invisíveis, atrás dos coqueiros e eucaliptos, infundia-me na adolescência, negro mistério do tempo da colonização dos escravos, índios e colonos, de escuridão e medo, como se as fases da lua chegassem naquele tempo por édito imperial. Como me perco na contemplação do Solar do Ferreiro Torto e os seus sortilégios de poder, carne, cobiça e paixão. E a descortinação surpreendente do Solar dos Guarapes. Quantas perguntas insaciadas não existem sobre o que ocorreu ali? Os seus fantasmas que subiam e desciam a colina sob a batuta do senhor de engenho numa cosmovisão ora polêmica, ora lírica, dentro do abismo da memória?  “Tu não mudas o mundo. Mas o mundo te muda”. Talvez essa frase de Otto Lara Rezende explique e me convença que o futuro nada tenha a ver comigo, porque o passado está mais presente em mim do que o próprio presente.

Em cada rua onde passo em minha terra natal, revisito os mortos na lembrança tentando reconstituir os fatos com os quais dividi o tempo. Adquiri o hábito de rezar por quase todos eles, todas as noites. Faço-os prolongar no meu convívio pela relembrança. Para mim o chão dos antepassados é sagrado, mesmo que estejam sepultados nele resquícios enferrujados e rangentes de um perdido fausto. Macaíba, mesmo debilitada pela decadência física, da feição das fisionomias de ontem e das coisas, o que mais me dói nela é o sumiço das boas mentalidades e dos antigos costumes, como se fosse hoje um porão cheio de escuro oblívio, melancolia e solidão. Nostalgias, nada mais. Apenas, inventário dos bens essenciais.

Por fim, digo como um poeta “que revolvendo o passado, é que se encontra a palavra que envolve a unidade do gênero humano”. Nesses tempos agitados, de assaltos, homicídios, que ultrapassam estatísticas criminais, só nos restam assumir o compromisso com o imponderável e repetir sempre que só o “amor pode ler o que está escrito nas mais remotas estrelas”, no dizer de Wilde, que era místico na arte, na vida e na natureza. Tudo está suspenso no ar. Fora da vida pública procuro ser feliz e calmo para ser livre e isento, sem aspirações maiores, além do sonho vivido.

Interessa-me ser simples, sombra e luz, palmilhando ainda na casa dos oitenta, afanosos instantes de profundidade vital.

                                                                                (*) Escritor

quarta-feira, 15 de março de 2023

 

FAMOSOS – MANIAS e HOBBIES

 

Diogenes da Cunha Lima

 

Manias e hobbies são próprios da natureza humana. Celebridades, gente famosa, não fogem à regra. Ambas têm caráter repetitivo. Enquanto os hobbies funcionam como distração, divertimento, as manias são hábitos que se repetem e, quando exageradamente repetidos, são patológicos, indicam um transtorno bipolar.

Estes substantivos definem a atitude de famosos. 

 

       Charutos e conhaque. O cardeal Dom Eugênio Salles, quando se sentia realizado, feliz, celebrava fumando e bebendo do melhor.

 

       Canivete. O cardeal Dom Jaime Câmara, de sangue potiguar, que fora bispo em Mossoró, guardava sempre no bolso da batina um canivete que usava para descascar laranja.

 

        Trocadilho. Dom Marcolino, primeiro arcebispo de Natal, era famoso pelos seus trocadilhos. Conta-se que inaugurou a casa comercial da família Bila, na Ribeira, dizendo: “Natal não merece uma bala porque é cidade bela, é aqui que mora os Bila, o que não me sai da bola é que ela merece uma bula de louvores”.  

 

        Cálice. Câmara Cascudo solenizava os acontecimentos marcantes, como aniversário de Verlaine e de Proust, bebendo em cálice de prata. De manhãzinha, ia ver uma trepadeira chamada botão-de-ouro para cumprimentá-la dizendo: “Bom dia, flor”.

 

        Conhaque de Pitanga. Gilberto Freyre servia aos amigos o seu conhaque (de pitanga). Segundo Lectícia Cavalcanti, autoridade brasileira em gastronomia, era produzido com frutas maduras do Solar de Apipucos e trabalhada com cachaça de cabeça.

 

        Monogramas. O senador Dinarte Mariz usava camisas com as letras bordadas DM. Vestia-se, impecavelmente, com alfaiate que trabalhava no Rio de Janeiro e Hong-Kong.

 

        Formiga preta. O reitor Onofre Lopes, fundador da UFRN, sentia-se grato às formigas. Jovem, trabalhava no campo (o chamado Lugar Comum) e tolerava a seca, o calor, a canseira do trabalho agrícola, mas o horror da picada das formigas pretas fez com que viesse para Natal e, aqui, principiasse seus estudos letrados e científicos.

 

        Vaqueiro. Silvio Pedrosa, governador do RN, havia cursado colégio nobre em Londres, era esgrimista, mas apaixonado por vaquejada. Cascudo chamava-o de “vaqueiro honorário”.

 

                  Biblioteca. A poeta Zila Mamede era sempre louvada como bibliotecária, rigorosa ao extremo. Eu estava como reitor e pedi a um funcionário para me trazer um livro de que estava precisando. Ele logo voltou dizendo que a diretora da biblioteca central disse ser impossível emprestar o livro a quem não estava com ficha regular. Depois me trouxe o livro, mas avisou: “Tome muito cuidado, porque o empréstimo está em meu nome”.

 

         Os famosos dedicaram o seu tempo livre aos hobbies preferidos e suas manias são contadas com graça e leveza.

 

terça-feira, 14 de março de 2023

 

O bispo que se aspira e inspira

Padre João Medeiros Filho

Este texto não resulta de uma consulta formal, tampouco consiste num documento institucional ou estudo comparativo. É fruto de diálogos fortuitos entre religiosos, leigos engajados e o Povo Deus. Há quem professe credo diferente. Entretanto, preocupa-se com a dinâmica da fé e sua influência sobre a sociedade. Afirma-se que a Igreja exerce significativa liderança. Recorda-se o Movimento de Natal com sua força propulsora para o desenvolvimento regional. Inegáveis são o contributo das escolas radiofônicas, dos centros sociais e a importância de tantas outras iniciativas, dentre elas, incentivo ao artesanato e cooperativismo, atenção à saúde básica e educação. A antiga Escola de Serviço Social exerceu um papel relevante para as mudanças estruturais.

Natal é uma das grandes arquidioceses brasileiras em dimensões territoriais e populacionais. Atualmente, a circunscrição eclesiástica detém uma superfície de 25.153 Km2 (quase metade da área do RN) e cerca de 2.191.000 habitantes, dos quais 1.752.793 católicos. O arcebispado – que se estende da capital do estado à cidade de São Rafael (distante 220 Km) – compõe-se de mais de cem paróquias e áreas pastorais, um clero ultrapassando duzentos presbíteros e cem diáconos permanentes.

A diocese foi criada em 29/12/1909 por Pio X, pela bula papal “Apostolicam in Singulas” (abrangendo todo o RN), sendo desmembrada da diocese da Paraíba. Posteriormente, cedeu território e clero para a instalação das dioceses de Mossoró (1934) e Caicó (1939). Foi elevada à categoria de arquidiocese, aos 16/02/1952 pelo documento pontifício “Arduum Onus”, do Papa Pio XII. Até o momento, foram seus pastores: quatro bispos e seis arcebispos diocesanos. Além deles, houve dois prelados auxiliares e três administradores apostólicos: um com a sé vacante (antes da nomeação do primeiro bispo) e os demais com a “sede plena”. A designação destes últimos foi decorrente da limitação, por cegueira, de Dom Marcolino Dantas, o qual ocupava o sólio episcopal. Entretanto, tais clérigos diferem de antístites transferidos, que permanecem governando o bispado até a posse em outra circunscrição eclesiástica.

Pergunta recorrente entre os fiéis: que pastor se deseja? Um homem de Deus, com espiritualidade marcante, fé contagiante, apaixonado pelo Evangelho, preocupado com toda a comunidade, dinâmico e de uma simplicidade que aproxima. Aspira-se que saiba nutrir a vida cristã com a Sagrada Escritura, Teologia, Mística e Espiritualidade. O Código de Direito Canônico recomenda (cânon 378, § 5º) que os candidatos ao episcopado possuam o grau de doutor (ao menos, mestre) em uma das disciplinas: Sagrada Escritura, Teologia e Direito Canônico ou sejam verdadeiramente versados nelas. O apóstolo Paulo, na Primeira Carta a Timóteo, traça o perfil episcopal: “É preciso que seja irrepreensível, sóbrio, ponderado, educado, hospitaleiro, apto para ensinar e moderado...” (1Tm 3, 2-4). E São Gregório Magno, em sua Regra Pastoral, lembra as virtudes que deve possuir: “É indispensável que tenha pureza de alma, ação exemplar que convença, a discrição do silêncio, palavras úteis, atenciosa compaixão, contemplação que o desapegue da terra, humildade que o faça irmão e servidor.”

  Anela-se que seja amante da Doutrina Social da Igreja e desejoso de apascentar a juventude e a população universitária. Hoje, a arquidiocese detém uma comunidade acadêmica mais numerosa que muitas paróquias. A presença do clero deve ser marcante nesse setor. Há necessidade de sacerdotes com acurada formação, espírito cientificamente crítico e abertos ao diálogo. A universidade é um espaço de reflexão, onde há lugar para o Evangelho. Nas décadas de 1960 a 1990, o arcebispado dispunha de dezesseis padres docentes nas universidades públicas. A comunidade acadêmica contava aproximadamente com doze mil pessoas. Atualmente, ultrapassa sessenta mil, tendo apenas um sacerdote lecionando no ensino superior. É fundamental uma preocupação com o ensino religioso nos colégios. Está desaparecendo a figura do padre ou freira professor de religião. Há algo que se deverá respeitar: a cultura de nosso povo. Convém cuidar de sua alma. Existe um fator endógamo nas famílias, tornando-as unidas e coesas. Mas, a mídia e as redes sociais tentam cindir tais vínculos.  “Cuidai de todo o rebanho sobre o qual o Espirito Santo vos estabeleceu como apascentadores da Igreja de Cristo, adquirida com o seu sangue.” (At 20, 28).