INVENTÁRIO DOS BENS ESSENCIAIS
Valério Mesquita
Vivo o desconforto e a nostalgia de mim mesmo ao me deparar com
o sonho dos meus vinte anos que a idade madura não confirmou. Sinto-me
disperso, irrealizado, quando retorno às minhas origens telúricas. A meta de
trazer o passado ao presente, reconstruí-lo pela palavra e pensamento a fim de
reconquistar a minha auto-estima, parece-me uma tarefa hercúlea porque constato
que o personagem não sou eu mas, sobretudo, o tempo. Deduzo que, precisaria
recriar os fatos e renascer as pessoas. Verifico que sou o resultado de todas
as convivências e acontecimentos afins do passado. Por isso, o vácuo e a
irritação me arrastam ao entendimento inconcluso de que tudo foi ilusão e
fantasia, ou infecção sentimental.
Mas, o patrimônio existencial da terceira idade, onde a memória
olfativa, a auditiva e, principalmente, a visual, procuram restituir-me o
universo perdido das fases inaugurais da vida. Aquela lua cheia, por exemplo,
vista do cais do rio Jundiaí em Macaíba, como se estivesse pendurada por fios
invisíveis, atrás dos coqueiros e eucaliptos, infundia-me na adolescência,
negro mistério do tempo da colonização dos escravos, índios e colonos, de
escuridão e medo, como se as fases da lua chegassem naquele tempo por édito
imperial. Como me perco na contemplação do Solar do Ferreiro Torto e os seus
sortilégios de poder, carne, cobiça e paixão. E a descortinação surpreendente
do Solar dos Guarapes. Quantas perguntas insaciadas não existem sobre o que
ocorreu ali? Os seus fantasmas que subiam e desciam a colina sob a batuta do senhor
de engenho numa cosmovisão ora polêmica, ora lírica, dentro do abismo da
memória? “Tu não mudas o mundo. Mas o mundo te muda”. Talvez essa frase
de Otto Lara Rezende explique e me convença que o futuro nada tenha a ver
comigo, porque o passado está mais presente em mim do que o próprio presente.
Em cada rua onde passo em minha terra natal, revisito os mortos
na lembrança tentando reconstituir os fatos com os quais dividi o tempo.
Adquiri o hábito de rezar por quase todos eles, todas as noites. Faço-os
prolongar no meu convívio pela relembrança. Para mim o chão dos antepassados é
sagrado, mesmo que estejam sepultados nele resquícios enferrujados e rangentes
de um perdido fausto. Macaíba, mesmo debilitada pela decadência física, da
feição das fisionomias de ontem e das coisas, o que mais me dói nela é o sumiço
das boas mentalidades e dos antigos costumes, como se fosse hoje um porão cheio
de escuro oblívio, melancolia e solidão. Nostalgias, nada mais. Apenas,
inventário dos bens essenciais.
Por fim, digo como um poeta “que revolvendo o passado, é que se
encontra a palavra que envolve a unidade do gênero humano”. Nesses tempos
agitados, de assaltos, homicídios, que ultrapassam estatísticas criminais, só
nos restam assumir o compromisso com o imponderável e repetir sempre que só o
“amor pode ler o que está escrito nas mais remotas estrelas”, no dizer de
Wilde, que era místico na arte, na vida e na natureza. Tudo está suspenso no
ar. Fora da vida pública procuro ser feliz e calmo para ser livre e isento, sem
aspirações maiores, além do sonho vivido.
Interessa-me ser simples, sombra e luz, palmilhando ainda na
casa dos oitenta, afanosos instantes de profundidade vital.
(*) Escritor