sábado, 19 de novembro de 2022

 20 DE NOVEMBRO: DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA


DOIS POEMAS, DUAS HOMENAGENS


(Por Horácio Paiva)


Nesses poemas, teço duas homenagens: à consciência de nossa negritude  -  nossa africanidade cultural e sanguínea  -  e à fraternidade universal, que deve prevalecer entre pessoas e povos, não apenas como exigência filosófica da moral humanista, mas como afirmação da diversidade do amplo patrimônio genético que nos compõe e nos une:


CANTO AO AVÔ AFRICANO

Procuro-te entre os demais
e não te encontro
talvez porque não aceitaste o convite
e o sonho do Brasil te foi imposto.

Vejo a tua sombra
e semente  -
já que o teu corpo foi corrompido pela guerra
pelo açoite
e pela prisão.

Os demais estavam à mesa
e todos tinham nome e origem.
Tu, porém, sobreviveste
sem o pão e o vinho.

Trazem-me dos demais a linhagem secular
lenda ou fantasia
e vou encontrá-los nas igrejas
cartórios ou bibliotecas.

Quanto a ti
a memória se perde
num vago e nostálgico sentimento passado
que vai enfim morrer na praia
na selva ou no deserto.

Contra ti urdiram a morte histórica
relegando-te aos livros
de registros contábeis
às ignóbeis transações de compra e venda.

Mas ergue-te, avô, pois ainda vives
e tua vida é maior que a derrota nas armas.

Dá repouso à tua sombra.
Vê que te ofereço
-  à luz do sol  -
um banquete com as lavouras que plantaste
e a que não faltarão
os alimentos sagrados que o teu gênio criou
os teus ricos orixás
as raízes de teus cantos, ritmos e danças.

E verás que à mesa estará presente
um povo
uma nação
construída com o teu sangue.

Não me renegues, avô,
não é minha pele que te chama
mas a noite de tua ausência.



FRATERNIDADE


Que me ajude o meu sangue árabe
Que me ajude o meu sangue judaico
Que me ajude o meu sangue europeu
Que me ajude o meu sangue africano
Que me ajude o meu sangue asiático
e indígena

Que me ajudem todos os meus sangues
a construir a fraternidade universal

 ENQUANTO O POVO DORME


enquanto o povo dorme
dizem eles
tudo é permitido
e não há censura

enquanto o povo dorme
não há problema algum
para os sombrios planos
tratativas e negócios

por que então desesperar
se ainda há tempo
e o povo está dormindo?

por que então se  preocupar
enquanto o povo dorme
e não há qualquer perigo?

ele não pode ouvir
ver ou entender
pois está dormindo

e nem acreditar
pois ainda não sabe
que a simulação é a chave

não há que perder a calma
quando ainda há tempo

não há risco
enquanto o povo dorme

o risco é o povo acordar

mas nunca é tarde
e ainda poderemos fingir
que sempre estivemos com ele
e que até o ajudamos
a despertar


-  Horácio Paiva

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

 

VOCÊ É AQUILO QUE APROVA

 

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@gmail.com

 

As minhas sensações se revezam depressa. Por mais que me esforce, não consigo me fixar em coisa alguma. Se penso ou sinto algum tema, deduzo que tudo será esquecido e me calculo inútil. Esse prelúdio indefectível talvez chegue a algum lugar. Gostaria de denunciar, por exemplo, aquilo que muitos já fizeram: a deterioração institucional do país que teve quebrados todos os padrões éticos e estéticos. A fragilidade e a inoperância dos poderes se tornaram tão patentes que já se comentam medidas autoritárias. Continuo pensando que é preciso urgentemente humanizar o político brasileiro. Ele mesmo animalizou os seus traços.

Quando me apetece voltar a suplicar às autoridades públicas e privadas a restauração do empório dos Guarapes, onde o pioneiro e gigante desbravador Fabrício Gomes Pedroza ambientou um dos maiores domínios comerciais de que se tem notícia no estado, recebe-se em troca repetidamente a leniência e a indiferença. Ai eu indago: pra que escrever mais? Pergunto-me se não estou me transformando em esteta contemplativo com uma tendência zen. Mas, continuarei lutando porque não é apenas um impulso da mente nem do corpo. Os “Guarapes” representam para aqueles que o ignoram, o equilíbrio entre a beleza e o passado.

Falar, por exemplo, das poças profundas de sangue que fluidificam a área metropolitana da grande Natal. Nela a juventude continua sendo executada nas ruas pelo cartel das drogas. Sinto que falecem os dons que me ligam a Macaíba, hoje, tão irreconhecível a ponto de não me rever mais em suas paredes e praças. A fuga é dormir à distância, debaixo de qualquer céu, como diria o poeta. Minha terra padece de uma enfermidade física, orgânica, urbana, suburbana, sensível, visível, palpável chamada “comércio de droga” que tem escravizado e mutilado suas melhores tradições. 

Poderia até discorrer sobre as opiniões e posturas dos políticos potiguares repletas de privilégios para si contra os servidores públicos, todos num beco sem saída. Os efeitos especiais empregados são improvisados. E parece que não há pressa em definir situações. Tudo deve ser queimado subrepticiamente a fogo lento. Tem gente gastando anos luz para compor o arquipélago da obra de chegar ao poder queimando incenso no velório da própria falência do poder público. Na política, sabemos que acidentes e incidentes nunca surpreenderam ninguém. Todos têm rostos e máscaras. Trata-se de uma peça de teatro onde o fascínio é exibido em prosa e gestos fesceninos. Que importa tudo isso, se depois da tempestade todos se unirão novamente para começar tudo de novo? O palco será o mesmo. Só muda a idade.

E o pugilo da saúde pública nos hospitais da capital? Esse merece veemente repulsa. É um libelo à competência dos administradores. A situação deplorável me infunde a convicção de que ninguém mais se comove com a dor humana. O melhor homem é o homem morto. Vivo é desprezível. Doente e pobre, ele fede. Onde deveriam remunerar melhor, paga-se pior e se gasta menos. Hospital público é a antessala da morte iminente porque está desprovido das condições de higiene e serviços. Denunciar o estado de calamidade financeira não constitui falar apenas em atraso dos vencimentos mas assistir privilégios vergonhosos das elites. Lembro ao leitor que o ser humano coisificou-se. Deixou de ser carne inteligente. Hospital “lugar de repouso e cura”, virou empório do estado, verdadeiro guardador de rebanho, onde o pobre, sem nenhum plano de saúde, tem defeito de circulação do sangue no corpo à alma.

(*) Escritor

 

Livres para tudo?
Qual a liberdade que devem ter os juízes para decidir? Incisivamente indago: eles, baseados num absoluto “livre convencimento”, podem tudo? Obviamente que não. E, para fundamentar essa resposta, poderíamos ditar teses de doutorado (mas rogo que me deixem, por preguiça, fora dessa empreitada).
Desejo fundamentar minha resposta apenas fazendo uma contraposição entre o livre convencimento sem controle, idiossincrático mesmo, e o princípio da igualdade, que considero o fundamento último, no sentido de mais importante, do direito.
Na verdade, o princípio da persuasão racional do juiz ou da liberdade na interpretação da lei (são vários os nomes dados), por mais importante que seja, há de ser conciliado com o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei. Sempre que aos casos iguais sejam aplicadas decisões judiciais divergentes, fruto de um apego quase religioso à liberdade de convicção do juiz, o princípio da igualdade perante a lei, no seu conteúdo, é aniquilado. Ou seja, a expressão constitucional contida no caput do art. 5º da CF restará como uma fórmula vã se não conciliarmos os dois princípios, e para haver conciliação pressupõe-se não aniquilar um dos princípios.
André Ollero Tassara, em “Igualdad en la aplicacion de la ley y precedente judicial” (Centro de Estudios Constitucionales, 1989), comenta a tensão entre a “independência dos juízes”, que não seria tão verdadeira assim, e o princípio da igualdade, com um ponto de vista bastante interessante: “A necessária conciliação dos elementos em jogo apresenta-se indevidamente como uma tensão entre a igualdade dos cidadãos e a independência dos juízes, o que desvirtua notavelmente este segundo conceito. Dentro de uma apresentação estritamente técnica da função de aplicação das normas, a ‘independência’ indicava a subtração a qualquer imperativo ou fonte de pressão, alheios ao processo técnico (‘políticos’, para reduzir o tópico). O juiz não deve depender de ninguém, e só se reconhecer submetido ao texto legal. O problema surge quando se torna evidente que não há tal aplicação técnica sem prévia interpretação valorativa; nela os juízos encadeiam-se inevitavelmente com juízos prévios, que marcam uma dependência peculiar do juiz: de si mesmo e de tudo o que compõe seu horizonte interpretativo, pessoal e dificilmente transferível. Esta dependência do juiz do seu próprio entorno, juntamente com o caráter mais ou menos aberto, mas sempre histórico do sentido do texto legal, explica a pluralidade interpretativa que os diversos órgãos acabam produzindo. A hierarquização processual ajudará a reduzir essa dependência judicial, suavizando-a. (...). Vincular o juiz ao precedente [e à lei, por óbvio] é obrigá-lo a controlar seus próprios juízos prévios em diálogos com juízos próprios e alheios. Assim se tornará mais dono de si mesmo e aumentará também a dimensão de sua independência; porque nada corrói mais a confiança na Justiça do que as aparências de arbitrariedade (‘independência’ sem controle) nos responsáveis por realizá-la”.
Aliás, causa espanto – quiçá indignação – o fato de que todos os juízes querem que suas sentenças tenham efetividade, mas alguns deles não querem dar efetividade à lei ou às decisões do STF, o mais importante tribunal do país. Um caso, lembrado por Francisco Rezek em voto na ADC 1/DF, ilustra o que se quer dizer: “Houve uma época – membros mais antigos deste Tribunal o recordam – em que determinado Tribunal de Justiça, numa prestigiosa unidade da Federação, dava-se crônica e assumidamente a desafiar a jurisprudência do Supremo a respeito de um tema sumulado (um tema, por sinal, menor: a representatividade da ofendida em caso de crime contra os costumes). O Supremo tinha posição firme, constante e unânime a respeito, e certo Tribunal de Justiça, porque pensava diferentemente, dava-se à prática de decidir nos termos de sua própria convicção, valorizando a chamada ‘liberdade de convencimento’, própria de todo juiz ou tribunal. Resultado: todas essas decisões eram, mediante recurso, derrubadas por esta casa. Aquilo que deveria acabar na origem, à luz da jurisprudência do Supremo, só acabava aqui, depois de um lamentável dispêndio de recursos financeiros, de tempo e de energia, num Judiciário já congestionado e com tempo mínimo para cuidar de coisas novas. E quando acontecia de a jurisprudência do Supremo acabar não prevalecendo, e de a decisão do tribunal rebelde encontrar seu momento de glória? Quando o réu, porque assistido por advogado relapso, ou porque carente de outros meios, não apresentava recurso... Só nessa circunstância a infeliz rebeldia contra a jurisprudência do Supremo dava certo. Com todo respeito pelo que pensam alguns processualistas, não vejo beleza alguma nisso. Pelo contrário, parece-me uma situação imoral, com que a consciência jurídica não deveria, em hipótese alguma, contemporizar”.
Esse tipo de coisa é de uma falta de pragmatismo inconcebível. É contrária ao interesse público mesmo. E é de se indagar: a quem serviria essa mitológica liberdade de convencimento? A pouquíssimos, a algumas vaidades no Judiciário e a alguns advogados.
Desculpem a sinceridade. Fim.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

 


LABIRINTOS

 

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@gmail.com

 

A verdadeira razão deste artigo está numa circunstância pessoal: a da convivência com o ser humano. Nessa arte, passei por múltiplas experiências entre as atividades política e funcional. Creio não errar ao presumir que conheço bem a natureza dissimuladora de muitos com os quais me relacionei. Fixei tudo em moldes e formatos de realidade nos compartimentos da memória. Desde o tempo em que exerci a política (e que gama imensa de caracteres eu achei!). Ninguém se dá conta que é cadáver adiado que procria, fala, finge, falha, sem saber que tudo que sonha passa. Alguns têm emoções vivas, mas sem auxilio crítico da inteligência ou da cultura.

Na vida política os personagens parecem ser de ficção. Partem da premissa da honra ser uma palavra e na palavra conter vento. São divorciados da constituição intima das coisas porque não falam através dos sentimentos e sim por metáforas. Exemplo: não enxergam nunca o mar mas a praia do seu veraneio, o bem, o patrimônio, o negócio, o lucro, a fartura, a espada de Dâmocles de trinta polegadas. Confidencio impressões que vivi de bons políticos do passado que recusavam aliciamentos de governos à hora do crepúsculo. Os de hoje se rendem sol à pino. Portanto, vi que tudo foi tecido de incoerências e mutações até chegar a podridão institucional de hoje, prenhe do horror e do mistério da impunidade. Por que está tudo assim, parecido com um pacto constitucional de permissividade e de não punição. O presidente da república tem a chave do cadeado que abre e liberta todos os malfeitores da sua empatia.

Aqui, e agora, contemplo um baile de máscaras, onde sorrisos punhais escondem. Fingir, eis a outra questão. Colho tudo onde vivo com o olhar e a razão. Freud, fundador da psicanálise desaprovaria vários dos seus alunos hoje, mas explicaria certos comportamentos. Hoje somos todos transeuntes de tudo. Os egoístas e vaidosos precisam se lembrar que são passageiros do abstrato. Pertencem a alguma coisa, desejam sempre algo mais, mas não visualizam no espelho o rosto caído por falta de humildade. Nem sabem, ao certo, se são felizes ou não. E nesse declive transformam-se em estátuas de si mesmo.

Desculpe o leitor, se divago com aquilo, ou com aqueles que nos oprimem. Mas, quantos que me lêem agora, não gostariam de falar assim? A paranóia, o delírio das grandezas habitam e germinam com mais adubo nos porões do poder. São figuras embalsamadas tipo Fernando Collor, Jader Barbalho, Arthur Lyra, Renan Calheiros, almas mortas, dentro de corpos inutilmente vivos, todos de natureza parasitária, ungidos pela plutocracia dominante no país. E nesse jogo de simulação, de servidão, impunidade, nenhuma reação ou atitude social de repulsa se ouve no Brasil. Parece um fenômeno mental onde o povo deixou de ser dono do seu país, da sua história, para entregar os seus valores a um bando de anarquistas. Não seria simulação, todos se abraçarem, inimigos que foram em passado recente, vítimas da chacota vermicida dos próprios partidos políticos. Provarão que toda celebridade quando não é célere e celerada. Uma contradição. Este é o mundo que nós habitamos. Labirintos. Apenas, labirintos.

Se há mais bandidos e malfeitores do que policiais militares e civis que não podem ser onipresentes e oniscientes para tudo coibir, qual a saída imediata, se não for a de modificar a permissiva legislação penal? É visível o gigantismo e o triunfo do poder nas mãos dos maus, como já pregava Rui Barbosa. Viver está se tornando extremamente perigoso. A convulsão armada foi deflagrada. O cacetete prende e o papel solta. A Justiça que existe para regular e defender a convivência, o equilíbrio, o bem comum, a dignidade humana e os seus direitos de nada têm servido ao cidadão porque não há paz nem segurança nas ruas e nas cidades. A continuar o mercado competitivo desses poderes, lugar nenhum presta para se morar. Nem no município de Triunfo Potiguar.


(*) Escritor