VIAS
PARALELAS: DOIS POETAS POTIGUARES.
- HORÁCIO
PAIVA -
Atribuem
a Cascudo haver dito que “Natal não
consagra nem desconsagra ninguém”. Mas
- alvíssaras! - Natal é também
mãe aconchegante: ergue um berço esplêndido às margens do Potengi, onde
acalenta (no silêncio ou mesmo na balbúrdia dos incautos) seus filhos legítimos
e legitimados. E entre eles se encontram, certamente, os poetas NELSON PATRIOTA
e JOÃO CHARLIER FERNANDES, portando cada um, a tiracolo, seu bornal de pérolas,
reveladas, pelo primeiro, no “LIVRO DAS ODES” (editado em 2012), e, pelo
segundo, no volume de poemas “ENTREGA AO MITO” (editado em 2016).
Quem
leu esses dois livros não pode ficar calado: opta pelo partido da consagração,
tal o seu óbvio valor. São duas joias, acrescentadas ao acervo literário de um
Estado tradicionalmente voltado para a Poesia.
Caminham
em vias paralelas, lado a lado, mas distanciados no estilo e no silêncio que a
cidade lhes impõe, talvez por inércia. Entanto, convergem em dois pontos:
qualidade textual e universalidade temática.
Com
efeito, seus acordes nada têm de provincianos e neste aspecto diferem do que
outrora fora, até certo ponto, usual na tradição lírica potiguar. Ademais, sua
qualidade textual revela o essencial: harmonia
- fruto da síntese beleza e verdade, ambas irmãs, como
diria Emily Dickinson, ou, como queria Keats, em sua famosa “Ode sobre uma urna
grega”, “Beauty is truth, truth beauty” (“A beleza é a verdade, a verdade a beleza”).
E é o que também penso: não existe beleza sem verdade. “Vi na Verdade, certa vez,/ a amiga de meu pensamento...” (Alfred
de Musset). Repetiria mais tarde essencialmente o mesmo o grande Rodin: “Beleza é a verdade profunda que transparece
através da forma”.
Mas
diferentes matizes os justificam, e demarcam a distância entre os dois.
As
“odes” de Nelson são encantadoras e resgatam, com originalidade, um gênero hoje
pouco usado pelos chamados “pós-modernos”. O diálogo é interior e, os textos,
do mais puro impressionismo, embora com acentos clássicos. A sua leveza, ou
doçura, fez-me lembrar, à primeira leitura, a antiga sonoridade da saudade e sombra de Marános, do querido Teixeira de Pascoaes, mestre
do saudosismo português; versos de Neruda, sobretudo aqueles de suas odas elementales, quando tratam do tema amor, e ainda, como não poderia deixar
de ser, o gosto da raiz ancestral das odes horacianas, que tanta influência
exerceram em Fernando Pessoa (Ricardo Reis).
Além
disso, seus versos deixam às claras a sua própria alma e tecem uma relação de
intimidade instantânea com o leitor, digna de um grande poeta. Aliás, é ele
quem diz, em sua “Ode ao derradeiro segredo”: “Não me importa a resposta/ desde que expresse a essência de minha
alma”. E vê-se que há música na alma e nos poemas, mesmo quando se adentra
a “noite voraz”. Além da “oculta voz” que fala por trás dos poemas, há também
uma música que parece evocar, pela estética e harmonia, a antiga, introspectiva
e permanente sonoridade de um Debussy... “A
vida, Laura,/ a preciosa vida/ nos chama!” Não há dúvidas, e o “Prélude à l’après-midi d’un faune” diz
a mesma coisa.
Aliás,
também com apelo à vida, à sensualidade e ao amor inicia Mallarmé o seu poema “Le faune”, fonte de inspiração de
Debussy para o seu poema sinfônico: “Ces
nymphes, je les veux perpétuer./ Si clair,/ leur incarnat léger, qu’il voltige
dans l’air/ assoupi de sommeils touffus./ Aimai-je um rêve?” (Traduzo: “Essas ninfas, eu as quero perpetuar./ Tão
claro,/ seu leve encarnado, que volteia no ar/ adormecido em densos
sonhos./Terei amado um sonho?”.
Guardiã
estética desta resenha, a provar-lhe veracidade, é a bela “Ode à oculta voz”, reproduzida ao seu final.
NELSON
PATRIOTA nasceu em Natal, capital do Rio Grande do Norte, no dia 4 de novembro
de 1949. Seus pais, como a maior parte de seus parentes próximos, eram naturais
de Touros, cidade litorânea, também do Rio Grande do Norte. Passou toda sua
infância na rua Padre Pinto, no bairro da Cidade Alta, Natal. Apesar de sua
enorme atividade intelectual, quer como jornalista, quer como promotor cultural
e escritor (com vários livros publicados e por ele organizados), editou apenas
um livro de poemas de sua autoria: o belo LIVRO DAS ODES, do qual extraio uma
de suas odes mais representativas e a reproduzo, ao final desta resenha, a ODE
À OCULTA VOZ. Já em prosa, no gênero ficção, é autor de “Colóquio com um leitor
kafkiano” (2009), “Um equívoco de gênero e outros contos” (2014), havendo
publicado, mais recentemente, o romance “Tribulações de um homem chamado
silêncio” (2015), e, mais recentemente, “Caderno de Espantos seguido de
Vaticínios da Língua do Não”(2019).
Não
menos surpreendente - e mágico
- é o singular caminho de JOÃO
CHARLIER FERNANDES. Nele, há dois perfis, ambos responsáveis pela grandeza de
sua poesia: o barroco, pelo preciosismo da linguagem, e o gótico, pelo
preciosismo das imagens - o que nos traz o fio encantador, o ambiente
mágico de integração espiritual de sua poesia a outras artes, e, entre estas, a
presença, ainda que simbólica, da música e da arquitetura.
Não
há exagero em situar, na sua leitura, a lembrança de velhas e eternas catedrais
góticas, associada ao som do órgão e do cravo, diletos intérpretes da música
absoluta de tantos geniais artistas barrocos, a exemplo de Bach, Vivaldi,
Scarlatti...
Tais
perfis, postos, com maestria, em rigorosa disciplina no ato de escrever, são
formadores de uma obra bela e original, e que, embora contemporânea, situa-se,
com feição de perenidade, à margem das tradicionais escolas delimitadoras do
tempo estilístico. Com acerto pode-se incluir “Entrega ao Mito” no rol das
melhores obras literárias - no segmento Poesia - do
Rio Grande do Norte.
O
encanto provocado agora pela leitura atenta e profunda da obra de Charlier
remete-me à emoção que senti, no final da década de 1970, ao ler, pela primeira
vez, outro admirável poeta, que também revela natureza gótica: Paul Celan,
judeu romeno de língua alemã que, com o advento da Segunda Grande Guerra,
exilou-se e fixou residência na França, onde veio a falecer em 1953.
De
Charlier, destaco, ao final desta resenha, em reprodução integral, a belíssima
elegia às antigas arcas, ou melhor, arcazes (cujo título por si só é precioso
achado), “Nênia para os velhos arcazes”,
uma obra-prima, com a notável e nítida presença dos aspectos gótico e barroco,
e, nesse sentido, referência maior do livro.
JOÃO
CHARLIER FERNANDES nasceu em Caraúbas, sertão do Rio Grande do Norte, no dia 20
de maio de 1944, filho de Reinaldo Fernandes Pimenta, tabelião público, titular
do 2º Cartório Judiciário da Comarca de Caraúbas, e de Gizélia Gurgel Fernandes
Pimenta, ambos de tradicionais famílias sertanejas. Após concluir o primário em
Caraúbas, veio para Natal, onde concluiu, no Atheneu, o curso clássico. Desde
criança, lê muito, e suas primeiras produções poéticas datam de sua
adolescência. Participou, em Natal, do chamado “Movimento dos Novíssimos”, que
agrupava jovens escritores da época (início da década de 1960). Incluído em
diversas antologias, publicou na imprensa local e nacional. Poeta, ensaísta e
crítico literário premiado. Só recentemente, em março de 2016, surge o seu
belíssimo “Entrega ao Mito”, do qual extraio a joia - joia
entre joias - e aqui a reproduzo.
Enfim,
eis os poemas, na sequência das datas de publicação das obras que os incluem
(“Livro das Odes”, de 2012; “Entrega ao Mito”, de 2016), e espero em
Plutarco - que na inspiração e no exemplo me emprestou
régua e compasso - a sua aprovação ao método e às escolhas:
De NELSON PATRIOTA:
ODE
À OCULTA VOZ
Há uma voz por trás dos teus poemas
que
me fala com palavras
mas
ecoa nos meus ouvidos
com
a doçura do vinho que bebo nos teus beijos
há
uma voz por trás dos teus poemas
que
me diz mais do que diriam tratados e cabalas
que
não tergiversa a respeito das coisas verazes
e
que dá aos fatos da vida a dimensão que eles merecem
há
uma voz por trás dos teus poemas
que
faz confidências de teus sonhos de mulher
e
te digo que sim
que
por tua causa
fiz-me
devoto de uma seita ainda inominada
mas
capaz de cumular-me de dádivas inenarráveis;
que
por tua causa
tornei-me
infenso a tudo que não lembre o
branco do mármore
ou
o bruto granito dos sentidos
que
por tua causa
fiz
de ti a minha causa
aquela
pela qual serei capaz de coisas
que
nem aos meus olhos confesso
(coisas
que sei que, se somadas às aspirações dos
outros homens
poderiam
abalar os alicerces da ordem e do caos
de
um universo inteiro)
por
isso
e
pelo mais que dispensa dicção
digo
que tens a chave, a senha, o código
desse
segredo
Correntes
de luz e trevas se digladiam ante nossos
olhos
Ignora-as
Amigos
laicos e devotos sugerem, preocupados,
medidas
saneadoras para os nossos desvios
doutrinários
Ignora-os
Nossos
amigos mais chegados, constrangidos,
Fazem
um ar pesaroso às nossas costas,
(deplorando
as “loucuras” que ainda faremos)
ignora-os
ainda assim
Nossos
filhos temem que de tanto agirmos sob o
domínio
dos
nossos egoísticos propósitos
Terminemos
nos desgarrando como dois pássaros
ébrios
Lançados
num voo cego
Ousa
ignorá-los, se fores capaz
A
vida, Laura,
a
preciosa vida
nos
chama!
De JOÃO CHARLIER FERNANDES:
NÊNIA
PARA OS VELHOS ARCAZES
Arcas:
memória que eu prendo
Mas redimo.
Nelas
ficaram os epitáfios
E
os meus passos
Quase
mantos frios.
Guardiãs
de trapos
E
pedaços
Nelas
ficaram os ornatos
De
aios e magos alados
Florões
de traços
Esmagados
Pelos pálios.
Arcas:
grã-vassalas
Dos vesanos
Nelas
só ficaram os
Desenganos.