terça-feira, 31 de agosto de 2010

ISAUTINA DO OUTRO LADO DO CAMINHO

Arte – Óleo sobre tela de Alice Brandão

A morte não é nada. Eu somente passei para o outro lado do caminho.
O que eu era para vocês continuarei sendo.
Me dêem o nome que sempre me deram, falem comigo como vocês sempre falavam.
Não utilizem um tom solene ou triste, continuem a rir daquilo
que nos fazia rir juntos. Pensem em mim. Rezem por mim.
Eu não estou longe, apenas estou do outro lado do caminho.
(Santo Agostinho)

Estou novamente diante de uma folha virgem, que me pede para ser violada. Mas a libido escrevinhadora está reprimida pela emoção, um sentimento arrebatador, transcendente, traduzido numa palavra que é somente nossa, duplamente nossa, os de língua brasílica e os que a experimentam em solidão: saudade.
Tentei inúmeras vezes transpor para o papel um relato sobre a ausência de Isautina, a minha sogra, amiga solidária e sempre presente, mas não pude. Não sabia por onde começar, nem como refrear essa caudalosa torrente de lembranças e de afetos que nos leva para muito distante da margem de onde melhor poderíamos apreciar os horizontes a que nos propomos desvendar.
Quase sempre eu era arrastado pela enchente do rio da memória, que transbordava as margens e cada vez mais me afastava da visão do horizonte.
Agora eu sei por onde começar: pela revelação mais contundente, porque fora do comum. A da “sogra amiga”, partindo-se da constatação de que essa associação é inconciliável, na opinião popular generalizada. No mundo inteiro as sogras são levadas à fogueira inquisitorial como verdadeiras bruxas, e queimadas em fogo brando para arderem mais lentamente, e experimentarem dores e sofrimentos inimagináveis.
De fato, fomos, no sentido pejorativo tradicional, genro e sogra. Batemos de frente inúmeras vezes até nos fazermos entender e respeitar pelo outro, delimitando os nossos territórios. Daí pra frente, deixamos essa condição parenteral(*) e nos convertemos em amigos. Uma amizade construída a partir dos dissensos, das nossas diferenças superadas e, portanto, amadurecida, duradoura.
Amávamos a mesma pessoa. Jailza era a sua única filha e companheira. Amiga incondicional, confidente, consoladora, parceira de “buraco” e de infortúnios, alma sexuadamente gêmea, e por isso capaz de compreender os gemidos, a importância das minimalistas rusgas existenciais cotidianas, como o ato de envelhecer, por exemplo, de se sentir só no meio da multidão e uma vontade leviana de chorar.
As duas eram cúmplices e co-habitantes de um universo só delas que eu nunca quis nem mesmo trafegar, para não quebrar o encanto de um esconderijo, um refúgio, um santuário exclusivo onde se desarmavam e se convertiam nelas mesmas. Em que eram ao mesmo tempo arrimo uma da outra, numa troca permanente de afeição.
Contentei-me em ser a sombra ou a ausência, quando as duas estavam juntas, porque moravam em cidades diferentes e pouco se viam, embora se telefonassem diariamente.
Ela-Isautina percebeu a manobra através de uma das pontes mais sólidas que construímos entre nós – o sentir intuído, sem necessidade de palavras ou explicações. Era uma pessoa de muita sensibilidade e um grau de percepção incomum, beirando o extra-sensorial. Salvo quando se recusava a acreditar no que intuía, como nas questões de família que a infelicitavam. Aí se tornava uma pessoa comum, debilitada e vulnerável.
Nesses momentos, sofria um processo acelerado de um envelhecimento sobrenatural, surpreendente. As rugas aprofundavam-se, os cabelos mais se encaneciam, as costas se curvavam sob peso imaginário insuportável, os olhos se embaciavam. E a voz adquiria um tono mais brando e mais grave. Como se mastigasse o fel para torná-lo mais digestível.
Li que em certas culturas primitivas e isoladas – os esquimós, por exemplo – os mais novos mastigavam os alimentos sólidos, tornando-os pastosos, para facilitar a alimentação dos muito idosos, desdentados. Era manifestação de carinho e de dedicação aos que se haviam devotado á família.
Provavelmente dava-se algo semelhante com Isautina, de modo inverso. Mastigava as fibras, os nervos e os músculos cozidos no sal e no fel do sofrimento, para transferi-los amaciados para os que a consolavam.
Via-a chorar apenas duas vezes e nunca mais desejei vê-la assim. Era uma explosão de dor comprimida, uma expressão magoada de desespero antigo sempre recorrente. Um grito gemido, se é que me entendem. Como o silvo de uma chaleira de água fervente, resultante de uma pressão muito poderosa reprimida sob controle.
Foi quando morreu o seu filho mais velho, Jailson . E quando se sentiu impotente para corrigir uma questão familiar. Jailza me informou que ela muito chorou, também, na morte do ex-marido, em trágico acidente numa rodovia em Mossoró; que, nessa ocasião ela literalmente desabou, pela primeira vez na vida.
É evidente que deve ter chorado muitas vezes sozinha, quando podia dar vazão, sem constrangimento, á sua tristeza que vinha de muito longe, coisa muito antiga e peregrina.
De alegria, lembro-me que chorou quando a filha casou-se comigo. E quando vieram os netos.
Como dizia um outro velho amigo, Jomar Elpidio de Oliveira, referindo-se á sua própria resistência às lágrimas, morava muito longe o “chorador” de Isautina
Porque, apesar de tudo, a alegria era o seu chão. Mercadejava sempre que podia numa feira de trocas, em que a tristeza era moeda corrente para a compra do riso fácil e do desfrute da bem-aventurança da alegria. Feliz não era, mas fazia força para arrancar de dentro de si as raízes da tristeza anciã e andeja, como já foi dito.
Gostava de serestas puxadas a cerveja. Amava a vida. Era generosa e conselheira. Tomava a si os problemas dos amigos e também dos quase amigos e, mesmo sem ter sido convocada, distribuía conselhos e “carões”. Não tinha papas na língua. Na hora de dizer verdades não poupava ninguém, nem mesmo os superiores nem as autoridades em geral. Era uma dessas paraibanas do brejo, retas, transparentes, diretas, solícitas, mas arrelientas, que dão um pão para não entrar numa briga, mas, se provocadas, não saem nem com a oferta de uma padaria.
Respeitava as pessoas e se fazia respeitar por elas. Principalmente pelos homens - que eles não se metessem a besta que ela lhes punha no lugar. Era mulher valente, de pelo na venta. Havia sido Delegada da Mulher e daí em diante, responsável pela coordenação do Juizado da Infância e da adolescência da comarca de Ceará-Mirim.
Na condição de Delegada da Mulher, prendeu muitos agressores do sexo feminino e por isso, deu força às mulheres e pôs cabresto nos ímpetos dos costumeiros torturadores de esposas e de mulheres da rua. Como espécie de Inspetora dos meninos e adolescentes, chamou muitos pais à responsabilidade e coibiu o liberalismo estimulante da paternidade machista daqueles que prendiam as suas “cabras”, mas soltavam e eram excessivamente tolerantes com os seus “bodes”.
Nesse trabalho, sempre contou com o apoio decidido da Juiza responsável pela vara especializada e pelos delegados da cidade.
Era um ser humano transitório, como as flores que só desabrocham em épocas determinadas. Nossa sorte é que ela era mais de uma dezena de espécies e por isso estava sempre florescendo. Era também instável, porque navegava entre o oceano em fúria e o mar em repouso e por isso o seu barco perdia-se entre tempestades e calmarias. Sua vida imitou a arte, fornecendo argumento para um folhetim dramático.
Quando nasceu a mãe trabalhava no cabo da enxada. Enquanto tinha leite para amamentá-la e alguém para ter a menina sob cuidados, ela foi ficando. Quando abandonou o aleitamento materno e o estômago passou a reclamar farinha, feijão e carne, a mãe entregou-a a um casal de conhecidos, para criá-la e depois ser serventia da casa, ate quando arrumasse emprego decente para sustentá-la. Em seguida, trocou a paraibana Araruna pelo solo potiguar.
A menina cresceu e começou a sofrer maus tratos. Era suficiente uma cara feia para justificar uma surra além dos limites do tolerável, que a deixava inativa no dia seguinte. Um dia, a mãe foi viver com um ex-combatente, velho conhecido, e lhe contou o infortúnio da filha. Foi o suficiente para que o companheiro, revoltado com o relato de maus tratos, fosse resgatar a menina e a trouxesse para Natal.
A menina cresceu num lar tranqüilo, com pai adotivo severo, estudou no Colégio das Neves e no Atheneu. E concluído o curso secundário foi levada pelo “padrinho” a alfabetizar os recrutas do então 16º Regimento de Infantaria, na Salgado Filho, onde o pai adotiva servia. Lá, conheceu o “Galego”, rapaz de Serra Negra, analfabeto, bonito e jeitoso, que era ordenança do padrasto. De olho em olho, toque de mãos, proximidade cheirosa, terminou em atração recíproca. Ela, uma morena bonita, de corpo roliço bem feito.
Casou-se com o ordenança, que dera baixa do quartel e agora era caminhoneiro, e foi viver em Mossoró. O marido tinha um espírito aventureiro, não conseguia esquentar lugar. Foi comerciante, dono de frigorífico, motorista particular e assentou-se mesmo havia começado, como caminhoneiro, piloto de sua própria liberdade.
Os filhos foram nascendo: um, dois, três, quatro bocas para alimentar. E o marido no mundo, deixando um dinheirinho que se acabava no meio do mês. Ela foi trabalhar. Depois, decidiu que iria para a Universidade. E foi. Graduou-se em Serviço Social e passou num concurso do estado, para lotar-se em Ceará-Mirim. O marido enfezou-se, mas, diante do inevitável, acompanhou a família, sempre com um pé na casa e outro na estrada.
Um dia o marido a põe contra a parede: ou ele ou o emprego. Preferiu o emprego, a estabilidade, a possibilidade de alimentar e de orientar os filhos na vida. Decisão que lhe custou o marido, a incompreensão de alguns filhos que a culparam pela ruptura da família e a silenciosa censura da sociedade, ainda preconceituosa, da cidade que a acolhera. E particularmente inepta por ocupar um cargo de conselheira social, vale dizer familiar – que autoridade poderia ter para apaziguar casais e orientar a educação dos filhos, com o casamento desfeito, a unidade familiar comprometida, e por decisão dela?
Impôs-se pelo trabalho, dedicação e competência. Recebeu seguidas promoções e preitos de reconhecimento profissional.
O coração era o seu órgão de choque, a caixa de ressonância dos seus embates com as desventuras que o mundo lhe impunha. Os filhos a censuravam por não cuidar-se e era mesmo que nada. O trabalho era sempre mais importante – embora fosse refúgio para não perder o juízo com tantos desencontros. Achava-se forte e portanto capaz de “tirar de letra” qualquer dificuldade. Deus a proveria, a sua fé a manteria sempre protegida.
Certa madrugada sentiu fortes dores no coração e foi levada ao hospital Dr. Percilio. O médico que a atendeu, em face da gravidade do seu estado, recomendou-lhe que viesse a Natal. Providenciou uma ambulância e a conduzimos ao Hospital Antonio Prudente, único autorizado pelo seu plano de saúde, Hapvida.
Aí começou um verdadeiro inferno. Posta numa dependência de primeiro atendimento, foi medicada segundo os padrões regulares do suposto diagnóstico de infarto. O clínico que a atendeu, fez a recomendação de encaminhamento à UTI e a possibilidade de intervenção cirúrgica. Nesse meio tempo, a matriz da empresa responsável pelo plano de saúde, a Hapvida, localizada em Fortaleza, informou que o seu prazo de carência recomendado, não havia sido ultrapassado. E, de fato, a carência já fora superada. Em seguida, que a recomendação do clinico não poderia ser atendida, porque não havia provisão no seu contrato. E havia.
Mesmo que não houvesse, a lei determinava o atendimento em caráter compulsório, em situações semelhantes, porque ela corria risco de vida. Esses trâmites consumiram mais de quatro horas, tempo precioso perdido em detrimento das suas chances de sobrevivência. Finalmente, desesperados, requisitamos uma UTI móvel da SAMU e, depois de mais uma hora de atendimento a procedimentos burocráticos, a dita ambulância e a respectiva equipe chegaram ela foi transportada ao Hospital do Coração.
Nessa unidade de saúde, ela foi conveniente e competentemente tratada, submetendo-se a duas cirurgias que, no entanto, dado ao agravamento do seu estado de saúde em razão da demora na tomada de providências, veio de falecer.
Morreu por negligência e omissão criminosa da dupla Hospital Antonio Prudente/ Hapvida, useiros e vezeiros deste tipo de expediente doloso, e que, nada obstante, ainda não foi suficientemente sancionado. Permanecem impunes, operando os seus negócios comerciais de modo criminoso.
Mas, sem que a ocorrência trouxesse nenhum consolo ou compensação pela perda da nossa querida amiga, as duas instituições criminosas foram condenadas, por sentença com trânsito em julgado, que reconheceu o direito à indenização dos seus herdeiros por perdas morais e materiais, reconhecendo, por conseqüência, a omissão e a negligência desses fabricantes de viúvos e viúvas.
Entre a indignação, a raiva e o sentimento de perda, prevaleceu a saudade, o sentimento de havermos sofrido a amputação de parte de nós, uma mutilação que nos deformou e cuja marca não pode ser enxertada. Uma cicatriz indelével, uma fratura exposta que nos denuncia sempre a origem: a falta do sorriso brejeiro de Isautina, do seu andar arrastado de quem padece de “esporões” nos pés, a voz roufenha pelo vício do cigarro, os vestidos de estamparias alegres, a maquiagem caprichosa, as suas mãos de fada no preparo das refeições triviais e extraordinárias, os seus resmungos cavilosos e os “carões” desconcertantes, mas tolerados.
Ficou-me uma última imagem, de uma foto tirada no São Pedro de 2008, dois meses antes de sua morte. Ela encarou a máquina com um sorriso meio debochado, cheio de brejeirice, que acentuou a falha nos dentes frontais mais expostos – uma marca pessoal. Trajava um vestido de florzinhas roceiras, bem a propósito da festa, e uma flor vermelha (uma papoula?) presa nos cabelos. A maquiagem lembrava a pintura das roceiras de antigamente.
Quando conclui a fotografia, disse-lhe que estava parecendo uma donzela do pastoril.
Ela olhou-me, zombeteira e provocadora, dizendo o seu bordão preferido:
- Você gosta de mexer, não é? Macaco não olha pro rabo...
Ainda nos vimos, e não sabíamos que seria a penúltima vez, quando veio para o velório de uma amiga, Chica, a irmã da nossa amiga Ana “Balaio”. Depois, pela derradeira vez, no hospital, sofrendo anginas insuportáveis mas encontrando tempo para mais um chiste: Gente ruim não morre fácil...É verdade. São os bons que Deus convoca para auxiliá-lo.

PEDRO SIMÕES – Professor de Direito (aposentado) Escritor e Advogado

Um comentário:

  1. MIRANDA GOMES disse...
    Pedro,
    É um belo texto e, ao mesmo tempo, uma denúncia pública. Você continua brilhante em seus trabalhos. Parabéns e um abraço do amigo Carlos Gomes

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