sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018


                 Um encontro com Rizolete Fernandes

[…] quando uma mulher está consciente de como se tece o mundo ao seu redor, obriga-se a dizer sua parte de verdade em benefício de toda mulher que nasça no futuro.
Joan Don Chittister
Dividida entre o apelo de um trabalho que chegara de última hora e o convite de uma amiga para ir ao cinema, decidi adiar as duas coisas para o dia seguinte e atender a um terceiro chamado: prestigiar a última edição da temporada de verão do Insurgências Poéticas no Bardallos. Desde que foram anunciados os homenageados do mês de janeiro, havia me programado para assistir a essa edição do projeto; mas os compromissos daquele dia realmente me deixaram em dúvida se eu deveria ou não sair de casa. No entanto, uma ligação de um amigo que eu não via há algum tempo, foi exatamente o impulso de que precisava para ir ao evento. Explico. Por estar bastante ocupada quando Antônio me telefonou, querendo me fazer uma visita, sugeri que nos encontrássemos em outro horário. Ficamos de tomar um café no final da tarde e acertar a revisão de um livro de contos que ele estava concluindo e pretendia inscrever em um concurso literário.
O encontro foi ótimo! Além de matar a saudade, alimentamos nossa alma com um papo delicioso sobre algumas descobertas literárias recentes e nossas pretensões de leitura para os próximos dias. Falei do meu encanto com o escritor uruguaio Horacio Quiroga, cuja narrativa me fascinou desde o primeiro instante. Por intermédio de um amigo também escritor, Edmar Claudio, tomei conhecimento desse mestre da narrativa cuja vida foi marcada por uma série de tragédias. O livro em pauta era “Contos de amor de loucura e de morte” (assim mesmo, sem vírgula). Faz parte dessa antologia um dos seus contos mais famosos, “A galinha degolada”. Antônio, por sua vez, falou com entusiasmo do mexicano Juan Rulfo, autor da novela “Pedro Páramo”.
Depois desse papo literário e de acertamos a revisão do seu livro, falei do meu desejo de ir ao evento no Bardallos e ele se prontificou a me dar uma carona. Tudo parecia estar convergindo para uma noite muito agradável. Mas antes de ir ao evento, ainda degustaria um saboroso café na agradável companhia de Antônio. Sim, porque esquecemos de pedir o café logo que chegamos, tamanha a nossa empolgação com o papo sobre Horacio Quiroga e Juan Rulfo, que acabou nos conduzindo para outros autores de língua espanhola. Antônio é aquele tipo de pessoa que sempre tem um assunto interessante para conversar. Além de ser um mestre na arte da narrativa, é um leitor inveterado e sempre tem ótimas dicas de leitura. Outro dia, por exemplo, me emprestou um livro muito interessante do paraibano Hildeberto Barbosa Filho, “As palavras, minha vida! (memorial)” (Ideia, 2017).
Voltando ao nosso café. Como sempre, ele pediu somente um café espresso e eu, um café e uma tapioca. Ele diz que não gosta de se alimentar fora de casa (“no máximo um suco de laranja ou um café”), e sempre dá verdadeiros sermões sobre os malefícios do glúten, da lactose e do açúcar. Após o café, seguimos para o Bardallos, um famoso bar do centro histórico de Natal, onde estava acontecendo o Insurgências Poéticas. A homenageada da noite seria a poeta Rizolete Fernandes. Uma noite recheada de poesia, música e artes plásticas era o que me aguardava por lá.
Além de querer prestigiá-la porque admiro seu trabalho, meu intuito era compensar de alguma forma minha ausência no lançamento do seu último livro: “Tecelãs/Tejedoras” (Sarau das Letras; Trilce, 2017), uma primorosa edição bilíngue (português-espanhol) em homenagem a vinte mulheres, a maioria delas escritoras, as quais ganham voz através dos poemas/autobiografias de Rizolete Fernandes, intercalados com textos, em verso e prosa, escritos por essas tecelãs da palavra, destacados em letra menor, como faz questão de frisar a autora na apresentação da obra. Os poemas são escritos em primeira pessoa. Nomes como Chiquinha Gonzaga, Frida Kahlo, Nísia Floresta, Cora Coralina, Emily Dickinson, fazem parte dessa obra cuidadosamente elaborada que narra com maestria a trajetória de vida e literária de cada uma das homenageadas. Histórias narradas por uma mulher que conhece profundamente a luta por direitos desse grupo. Afinal, estamos falando de uma escritora/poeta que é também socióloga e militante dos movimentos feministas desde os anos 1980.
A tradução dos poemas para o espanhol foi feita por Jacqueline Alencar, que também assina o prefácio do livro, um texto que aliás merece toda a atenção do leitor. Como já disse em outra crônica, tenho verdadeiro fascínio por prefácios e orelhas de livros. Ao contrário de alguns leitores, não penso que podem influenciar negativamente minha visão da obra. E não foi diferente com o prefácio de “Tecelãs/Tejedoras”, um texto agradável, informativo e muito didático, que aliás começa de forma encantadora: “Abrir o livro ‘Tecelãs’, de Rizolete Fernandes, é como reencontrar-se com um desses poemas de Homero ou de Virgílio, que em forma de corpo em versos nos relatam as mais insólitas histórias […]”. Incrível como a autora consegue falar de um tema espinhoso como é a luta das mulheres por direitos de uma forma tão leve e poética e ao mesmo tempo. Jacqueline Alencar cita boa parte das mulheres homenageadas por Rizolete Fernandes e encadeia muito bem a descrição de cada uma delas, demonstrando profundo conhecimento do tema em discussão. Ao reforçar a importância das mulheres homenageadas por Rizolete Fernandes, ela diz: “A poeta nordestina nos vai mostrando mulheres que foram capazes de deixar um legado para seus descendentes, ainda que à custa de não ter o prazer de desfrutá-lo. Elas vão unidas pelo cordão umbilical da valentia, da dignidade e de uma fé insubornável, em seu valor e no transcendente”.
Na chegada ao Bardallos, uma agradável surpresa: encontrei um casal de amigos que estava passando por ali casualmente. Depois de cumprimentá-los, conversei um pouco com o artista plástico Pedro Pereira, que estava com uma exposição de quadros e outra de camisetas pintadas à mão. Ele e a esposa (Alda) estavam vendendo as camisetas na calçada do bar, junto a vários outros artistas que ali expunham sua arte. Os quadros estavam expostos no interior o bar, onde permanecerão por alguns dias.
Os shows e o sarau em homenagem a Rizolete Fernandes começariam em pouco tempo. Enquanto isso, do lado de fora do bar, uns tomavam uma cerveja, outros fumavam um cigarro. Fiquei ali por um tempo apreciando as peças do bazar e os livros de poesia que estavam à venda. Havia também um rapaz vendendo alfajor e uma moça comercializando blocos e cadernos com capas artesanais, um trabalho primoroso. Aliás, muito me agrada essa ideia de poder contribuir com vários artistas cada vez que prestigio uma edição do evento, cuja entrada colaborativa custa R$ 10.
Depois disso, entrei no bar e procurei um lugar para sentar; enquanto aguardava alguns amigos. Ao cumprimentar Rizolete, ela gentilmente convidou-me a sentar à mesa onde estava com algumas amigas. Agradeci e juntei-me ao grupo. Em pouco tempo, começaria a apresentação do grupo Agô e o recital dos poemas dela. O convite foi a deixa para uma conversa agradável e um mergulho na sua poética. Falamos sobre a qualidade da música do grupo Agô, cujo vocalista, Felipe Nunes, teve a delicadeza de musicar um dos poemas dela (“Multiface”). Quando falávamos sobre o grupo, ela lembrou sua descendência negra por parte dos avós, os quais não conheceu. Também lamentei por não ter conhecido meus avós. Nesse momento, falamos de um sentimento comum: a nostalgia de algo que não foi vivido, “o que para alguns parece algo meio louco”, como ela mesma disse. Falei do meu desejo de escrever sobre isso; no meu caso, traçando um paralelo entre a história de alguém que teve uma boa convivência com seu pai e a minha experiência, que praticamente não convivi com o meu.
Os assuntos foram os mais diversos; saindo um pouco do âmbito literário, falamos de cabelos brancos (e da pressão social sofrida pelas mulheres para mantê-los tingidos), velhice, qualidade de vida. Ela diz aceitar a velhice com naturalidade e destaca que “o mais importante é a vida que está levando”. Reforçou a importância de cultivarmos boas amizades e de estarmos sempre perto das pessoas que nos fazem bem.
Um encontro que serviu para aumentar ainda mais minha admiração pela escritora, mas sobretudo pela mulher sensível e forte que é Rizolete Fernandes. Humildade, simpatia, delicadeza, são algumas das palavras que descrevem muito bem a poeta de “Luas Nuas” (Una, 2006) e a cronista de “Cotidianas” (Sarau das Letras, 2012). Aquela foi uma noite de partilhas, não somente literárias, mas também de vida…

Na volta para casa, plena de alegria e gratidão, cheguei à conclusão que ter ido ao Bardallos naquela noite foi realmente a melhor coisa que fiz. O trabalho esperaria pela manhã seguinte, o cinema com a amiga, também.

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