quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

 

O SONHO DO POETA

 

                                               -  Horácio Paiva*

 

                        Há na poesia do saudoso amigo e poeta Gilberto Avelino, que releio neste Natal de 2022 (vinte anos após sua morte), a sensação de profundidade espiritual, de evocação de instantes perdidos, porém magicamente recuperados na memória lírica.

 

                        Recordo o nosso último encontro pessoal, em nossa querida e lendária Macau, centro do mundo, porto a que sempre ancorávamos em nossas divagações existenciais. E isto, certamente, mais uma vez nos colocava em harmonia com a eternidade.

 

                        Mas não sabíamos que ali havia, também, uma despedida, um adeus, já que logo, em 21 de julho de 2002, o poeta faleceria. E vivemos aquele encontro na plenitude da poesia e do trabalho profissional.

 

                        Chegara à sua casa da Rua Pereira Carneiro às nove horas do dia 17 de julho, uma quarta-feira, e a encontrara iluminada com a sua alegria.

 

                        Gilberto, embora muito bem humorado, estava ansioso por revelar-me um sonho que tivera na noite anterior e, antes da leitura de seus novos poemas, passou a narrá-lo. Contou-me que tivera um sonho impressionante com o meu pai, Horácio de Oliveira Neto, já falecido. Durante toda a noite sonhara com ele, nos velhos tempos da agitada política macauense. E este, insistentemente, chamava-o: “Preciso de sua assessoria, com urgência, aqui.” Ao que respondia o poeta que logo iria, assim que concluísse determinado trabalho.

 

                        Gilberto admirava o meu pai, o seu caráter, a sua idoneidade, a sua coragem pessoal. Ingressara na política macauense através dele, ainda muito jovem, acadêmico de Direito. Prestava-lhe preciosa ajuda, com o seu talento e habilidade, porque acreditava nele e o julgava o mais apto para administrar Macau.

 

                        O escritor argentino Jorge Luis Borges, em seu “Libro de Sueños”, narra inúmeros e impressionantes sonhos de vultos históricos, sem adentrar-se em interpretações. Ali há relatos magistrais de sonhos de  Nabucodonosor, Jacó, José, Salomão, Confúcio (que sonhara com a própria morte), Cipião, Coleridge, Abraham Lincoln, dentre outros.

 

                        Eu e Gilberto também não nos fixamos em interpretações e, logo após a sua curiosa narrativa, passamos a outra modalidade de sonho: a poesia. Em seguida, o labor profissional da advocacia consumiu o restante do dia, para sempre memorizado.

 

                        Mas não quero terminar sem antes pôr em relevo a beleza e a lúcida singularidade desses versos do grande lírico espanhol Juan Ramón Jiménez, que tanto falam ao meu coração:

 

“Como aprendemos a morrer em ti, sono!

Com beleza magistral

nos vais levando  -  por jardins,

que parecem cada vez mais nossos  -

ao conhecimento profundíssimo da sombra!”

 

                        Relembro a nossa profunda amizade, que a morte não acabou, as nossas conversas infindáveis, as nossas divagações sobre política e projetos para Macau, sobre literatura, sobre o amor, sobre Deus. Relembro quando dizíamos que, assim, conversaríamos eternamente.

 

                        Macau e a poesia não perderam: ganharam Gilberto.

 

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(*) Horácio de Paiva Oliveira  -  Poeta, escritor, advogado, membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA.

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