quinta-feira, 1 de julho de 2010


Charge – José Carlos

O sol não manda arautos à frente para anunciar-se, mas a sua luz (Zalkind Piatigórsky)


DIÓGENES, INVENTOR DE CRIATURAS, COLECIONADOR DE AMIGOS

(RETRATO 3 X 4 DE UM AMIGO-POSTER MERECEDOR DE OUT-DOOR)

Ninguém foi mais biografado, referido, louvado e amado que Diógenes da Cunha Lima, filho.
É o modo que os seus muitos amigos encontraram de expressar o seu bem-querer e a sua
gratidão pela amizade-sombra-guarda-chuva de tão querido parceiro. Quem chegou tarde
encontrou pouco espaço para dizeres, querências e louvações. Restaram os entretantos
e vieses. Pouco mais que uma ou outra pose para um retratinho no lambe-lambe das feiras
interioranas. Nesses espaços, confins e lindes ainda assim aventuro-me, temerário e desajuizado, sovinando
ouro, incenso e mirra por pauperismo de origem, carecendo até mesmo de riqueza narrativa
ou vocabular para fazer o enfrentamento das circunstâncias. Mesmo assim, rendo merecidas loas
porque o santo não é de barro nem o andor colado com cuspe.


Trouxe a lume o dia mais claro e mais azul que pudesse ser. Alumiou mais ainda a claridade para observar a criatura. Descobriu-se um Diógenes diferente do grego, amante da criação e da criatura. Não mais buscava, anunciava. Tornou-se poeta, de frase curta, rima incidental, palavra grávida de beleza e de intenções, precisa. Suficiente.
E por amar o mundo e os seus habitantes, fez-se, naturalmente, generoso. Largo de gestos, talvez, parafraseando a poeta, gesticule seu pensamento, de sorte que mesmo estando parado é já ter compreendido ou não ter dúvidas.
Com um abraço, transfere-se, com um sorriso se explica. Com a palavra constrói amigos e abrigos, inventa alvores e ainda reúne os escombros do dia para fundear a noite.
Em suas lidas, “... reparte a côdea, o boi (...) e sobretudo e mais que tudo, a palavra sem fel”. Uma pomba seria a imagem mais adequada para o seu verbo – branca, plumosa, digna, no bico um ramo de algaroba anunciando o fim da estiagem e os rigores do inverno.
O sorriso sempre pronto, freqüente e estimulante, mal comparando, como as portas automáticas que se abrem quando o sensor indica a presença humana, e, bem comparando, qual o girassol que se volta na direção da luz. Um sorriso a meio caminho do vicariato, no rumo do hospitaleiro interiorano. Com gosto, sempre. Um meio aguado quando de simpatia, apenas. Mas cheio de sol nos portantos e portentos.
Todavia, cautela é recomendável, sem pressa conclusiva quando o virem assim, na tarde, sorridente, imaginando-o sem propósito. Jorge Fernandes adverte:

Habitualmente vivo assim, sorrindo.
O riso para mim exprime tudo...
E no ato mais sério, estando rindo
Sou mais sério rindo que sisudo.

Porejado por uma santidade profana, porque aceitou, melhor dizendo, acoitou os pecadilhos como contraponto de sua natureza e fatalidade inelutáveis. Legítima defesa. Afinal, tornara-se mortal e nordestinado desde que viera á luz num vale de lágrimas, cuja tanta profusão formou o Curimataú, recorrente rio da infância. Nessas águas, dessalinizadas e adoçadas no sobejo da boca do Diógenes-pai, e Eunice-mãe, navegou até o Potengi.
Primeiro, desembarcou no refoles de Riffault. Quando, que nem Crusoé espiando as sextas-feiras, descobriu as margens ramosas. Um dia, teve vontade de continente e, conduzido pela maré, fincou raízes provisórias à beira do cais da Tavares de Lira.
Depois, transplantou-se pelas ribeiras e alecrins e pelas alturas e baixios da cidade. Virando homem-árvore (imponderável baobá) danou-se cabeça arriba para as dunas, mergulhou a folhagem mística no mar de arrebentação pouquinha, recolhendo a sutil renda branca tecida pelas ondas para formar as nuvens, e, fiado no farol de Mãe Luiza, aventurou-se por mares nunca dantes navegados.
Conheceu os sábios do Sião, os Reis Magos, o santo Cascudo de muitos saberes e muitos charutos, os mitos e as lendas de um Natal memorável, seiva de suas raízes – Navarro, Dorian, Rabelo, Veríssimo, Djalma Marinho, Jorge Fernandes, Zila Mamede, Onofre Lopes, Nei Leandro, Lula Capeta (também louvado como Guimarães), Sanderson, o almocreve de sextante apontado para as estrelas...fábula, fábula.
(De Itajubá, o Ferreira, só conheceu a poética, mas foi suficiente. Rendido pelas tantas belezas dos versejados, num culto à sua imortalidade, mandou restaurar a casa onde nasceu. Como mandou esculpir e pintar quadros dos seus cultuados, num ritual pagão pré-franquado por Deus. É assim o magnífico Diógenes.)
Com aprendizado bem posto e afamado, foi ensinar o que aprendeu, para não sovinar a ciência. Capitulou-se à universidade e ficou sendo seu Reitor. Refém do seu ofício, entregou-se escravo de ventre livre à sua terra e à sua gente. Foi mais além, foi deão de todas as universidades brasileiras, e é presidente do Panteão de Letras Potiguares, sem perder o sotaque, nem perder de vista o verde oceânico potiguar, a fascinação das dunas caprichosas e o aleitamento do Curimataú.
Porque foi sempre e a vida toda uma criatura compromissada com a sua aldeia, que nem o santo besouro cascudo Luís da Câmara e o Fernandes que Jorgeou com os pássaros.
Andou por Seca e Meca, Oropa, França e Bahia. Foi condecorado, enaltecido, honrado e comendadorado, mas, no terceiro dia sempre ressurge dos céus mais luminosos e promissores e planta-se nos quintais da sua terra adotiva. Toca o sino, como os nativos dos mares do sul sopravam os búzios, para as celebrações dos amigos, em Pirangi – o mar embaixo, caminho de navegação, carta de alforria da alma viajora.
Homem que bota fé nos compromissos assumidos, leal, pastoreador de amigos e de sonhos delirantemente perseguidos e realizados, surpreende os alheados e se assombra, ele próprio, com a o tamanho e a extensão dos seus devaneios.
Decidiu criar o projeto Rio Grande do Norte, em que faria a Universidade debruçar-se sobre os problemas de sua terra e oferecer-lhes alento e cura. Assim o fez. Enfrentou o desafio de executar o maior programa de editoração da produção intelectual dos docentes e discentes da sua academia. Foi feito.
Beiradeiro de Nova Cruz, fez propósito de liderar os dirigentes das instituições de ensino superior do país. Tudo gente bem letrada e bem falante. E foi. Quis ser dono de um baobá, ao menos tutorar um espécime dessa árvore-útero, sementeira da raça, instituir-se o seu poeta e oficiante, e deu no que deu. O “baobá do poeta” é atração turística de Natal. É, por isso mesmo, o homem-árvore referido nos prolegômenos desse escrito.
Deu até nome de Estação Ferroviária, a da Ribeira, de mor valia. Quem já emprestara seu nome a tanto alvoroço, gente de indo e vindo, lendo na plaquinha o porto seguro de partida e de chegada: Diógenes da Cunha Lima? Só um predestinado a ser.
Coleciona amigos como outros o fazem com coisas ditas muito importantes sem importância nenhuma.
Diz que até inventa pessoas, descobre um quê embutido em cada um e, por artes d´alquimia, faz florescência desse intuitivo insuspeitado.

Cada causo tem três estórias: a sua, a minha e a verdadeira.
Mas esse causo eu conto, como o causo foi. Rei é rei e boi é boi.

Conto um causo de vera acontecência como romance sem rima, seco que nem o chão da catinga, aqui e acolá, um respiro de uma macambira e de um mata-pasto. Lá vai:
Malsucedido numa fábrica de ração para aves, certo advogado, ainda jovem, mas já renomado, desfez-se do seu patrimônio para saldar as dívidas comerciais e aceita convite para administrar um grupo de empresas na distante Teresina, capital de Piauí.
Corria o ano da graça de 1976/1977, por aí...
Dito causídico que tinha até veleidades literárias, um poeta passivo e militante de sonhos vários, de repente vê-se degredado para um sítio ermo de praia e de brisa, os floreios convertidos em atos de gerência, haveres e deveres, exilado da sua aldeia. Os filhos, todos mui pichotos, deram para emagrecer e apresentar um calundu de fazer dó. Saudades da terra Natal, textualmente.
Passou ano e meio cabeça baixa, sem olhar o céu, impondo-se ofício missionário: já que a quimera havia murchado, que recuperasse viço o patrimônio perdido.
Em fins de 1978, recebeu a convocação do amigo, então candidato a Reitor – que voltasse para Natal, que era o seu lugar. Quando chegasse os problemas seriam solucionados a contento, sob seu patrocínio.
Vendeu o que tinha e atendeu, confiante, ao chamamento do seu patrono. Incorporou-se à campanha para conquista da Reitoria da UFRN, participando de um grupo com centenas de militantes e após dura batalha, hoje mitigada mas dantes celebrada como encarniçada, Diógenes foi nomeado para o cargo.
Nesse meio tempo, sentou praça como editor-assistente do Rn-Econômico, que atravessava uma extraordinária fase de expansão, não por seu auxilio, mas porque confirmava-se a excelência da parceria Marcelo Fernandes-Marcos Aurélio Sá, dois grandes amigos e profissionais competentes, que se completavam.
Certo dia, o amigo-reitor comunica que quer tê-lo como o seu substituto na cátedra de Direito Comercial. Que buscasse Amaury Sampaio Marinho, então chefe do Departamento de Direito Privado, para os acertos.
Pouco mais de um ano depois, o inventor de gente consultou Marcos Aurélio Sá, seu também amigo, porventura o desfalque do editor assistente era perda irreparável, ou suportável em curto ou médio prazo. O jornalista respondeu que preferia manifestar opinião depois de conversar com o seu editor, para aferir as suas conveniências e sugestões e avaliar a conjuntura.
Deu-se então que Sanderson Negreiros havia pedido exoneração do cargo de Pró-Reitor de Extensão e Diógenes, inconformado com a perda, queria ter o amigo, a quem creditava a qualidade de bom executivo, para ocupar a vacância do notável intelectual.
Um complexo de inferioridade apossou-se logo do convidado, pari passu com a preocupação de deixar os dois amigos que lhe confiaram a editoria da revista em dificuldades. E porque substituir José Sanderson Adeodato Fernandes de Negreiros, era tarefa para kamikaze, tamanha a criatividade, a inteligência e a referência de boa gestão na área responsável pela cultura da UFRN.
Afinal, feita as ponderações necessárias, e tirado os nove-foras, decidiu conforme o que é sempre dito como lugar comum em tais situações – aceitar o desafio.
O resto é história conhecida.
A Pró-Reitoria de Extensão, graças às idéias e ao apoio irrestrito de Diógenes, converteu-se em modelar, mantendo cinco programas inovadores que mudaram a feição dessa unidade acadêmica: Programa de Editoração do Trabalho Intelectual da IES (Peti), gerenciado por Dona Salete e Amaral; Programa de Aplicações Científicas e Tecnológicas (Pacto), pelo Professor Adilson Gurgel de Castro, com ajutório de Uilame Umbelino, Liacir Lucena e Glaucus Brelaz; Programa Memória, pelo professor Iramar Araújo e Programa Vanguarda, pelo professor Ari da Rocha.
Além disso, o afoito desafiado tinha sob sua guarda, o Crutac, menina dos olhos do sempre-reitor Onofre Lopes, a Editora Universitária, o Núcleo de Arte e Cultura, o Núcleo de Estudos Panamericanos, a Televisão Universitária, e o Centro de Convivência. Era um mundéu de coisas para cuidar e tocar, tudo feito com dedicação e carinho por uma equipe memorável: Fernando Lira, Airton de Castro, Vilma Sampaio, Lúcio Brandão, Carlos Lira – ah, meu Deus, Carlinhos Lira, ele próprio Memória Viva, vivo e eterno na memória. E Franco Maria Jasiello, romano erudito de chapéu de couro e gibão. Tão “magnífico” amigo quanto Diógenes que encarnou e deu essência afetiva a esse título acadêmico.
Graças a essa equipe e ao apoio do Reitor, o titular da Pró-Reitoria alcançou tal prestigio e notoridade que se habilitou a disputar a sucessão do próprio Diógenes, merecendo dos conselhos superiores o maior número de votos e a primeira posição da lista sêxtupla na disputa pela sua sucessão.
Esse tal fui eu, também criatura “inventada” por Diógenes.

Fim do causo e continuação das loas de merecimento

Há nessa criatura-criadora, também, e um tanto sobretudo (literalmente reforço e abrigo), um advogado de tanta maestria e alquimia que é capaz de tocar Midas e convertê-lo no que quiser, um abre-te sésamo que é univitelino com o direito regente no país. Cortez Pereira, injustiçado e fustigado indignamente como fosse, com licença da má palavra, boi-de-piranha, foi tocado por esse-um.
Mas, até esse dom é diluído em tantas vertentes, quantos heterônimos de Fernando Pessoa, tributando-se a jusante e a montante a uma corrente que é principal e essencial: o poeta-escritor, que magicamente, valendo-se do próprio ofício e dele recorrente, inventa gente e coleciona amigos.
É também compositor, escreve estórias infantis, e, se brincar, casa, batiza, faz chover no seco e no molhado e inventa uma lua três vezes sol.
Cogito que é espécie dissemínula, diáspora. Reproduz-se em outras tantas espécies, transplanta-se, transmuda-se, transfigura-se ocasionalmente. Transfere-se grão no bico de ave-palavra-pomba, não mais algaroba, mas sementeira de baobá robusto e frondoso, sagrada habitação telúrica onde as oferendas são plantadas em demanda da beleza.
Eis porque mordo a língua...
“ ...e deixo minha fala secar comigo,
e cair como poeira
sobre os olhos famintos”
monte de cinzas
uberdadivosas
adubo de bem quereres

OBS. Quando me ponho e me colho a transfigurar os amigos, inventando personagens e cenários onde pudessem caber, vejo sempre um Diógenes olímpico, boêmio e cristão: túnica e louros de tribuno romano, harpa a tiracolo, como os tangedores de violão, sentado à mesa da santa ceia no mesmo lugar do Divino Mestre, os amigos ao redor aguardando a multiplicação dos pães e do vinho, com gestos largos e solenes, como é seu jeito de ser.


PEDRO SIMÕES – Professor de Direito aposentado, escritor e advogado.

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