sábado, 10 de janeiro de 2015

A   H O R A   D O S   Q U E   S A B E M   M O R R E R
Gileno Guanabara, do IHGRN

Horácio Arturo Ferrer nos deixou, no dia 14 de dezembro passado, um dos últimos suspiros sentimentais do tango, em Buenos Aires. Nascido em Montevideo, em junho de 1933, foi letrista e o parceiro mais importante do genial Astor Piazzolla. Dentre as criações que compuseram estão a Balada para un loco (1968), ou loca, como se tornou conhecida na Argentina, ou louco, na versão difundida no Brasil pela voz de Moacyr Franco, e a Balada para mí muerte (1971). Compôs inúmeras outras canções para os álbuns En persona; Maria de Buenos Aires – Primeira parte; Maria de Buenos Aires. Poeta e escritor, registrou as origens do tango, sem distinguir diferenças entre o tango portenho e o uruguaio.
Residiu na capital Buenos Aires, para onde se transferiu em 1960. Chamou a atenção de Piazzolla, que o apelidou El Duende e lhe convidou para fazer uma parceria: Isso que você faz na poesia, eu faço com a música. Venha trabalhar comigo.  O que Ferrer se propunha fazer como poeta, letrista e inovador, era senão perverter o tango. Aceitou a parceria que durou mais de quarenta anos, a mais duradoura e fértil da história musical oriunda das zonas portuárias de Buenos Aires. Costumava dizer que o tango era imortal, mesmo que não se lhe acrescentasse uma nota, um passo de dança, nem mais o acompanhamento de um bandoneón. Equiparava-o em importância ao jazz ou ao flamenco.
A partir dessa parceria, jamais o tango argentino seria o mesmo, difundido sem fronteiras, ao que Jorge Luis Borges nominava essa forma de caminhar pela vida. Conhecedores e sócios na leitura dos clássicos, os parceiros encartaram melhor do que os demais as transformações do tempo, sem que o tango deixasse de ser da milonga e da nostalgia. Guardavam semelhanças no jeito de viver as emoções. Igual ao parceiro, Ferrer era boêmio, notívago e, em especial, demonstrava sensibilidade para com as artes plásticas. Trabalhavam até quando o sol se punha, numa jornada de mais de doze horas por dia, quando então juntos davam vazão ao prazer etílico, afinal ninguém é de ferro.
Ferrer considerava a Balada para un loco o seu maior sucesso, cuja poética dizia ter influências do cubismo e do surrealismo em voga ao final dos anos de 1960, como também tinha o apelo ao visual que visualizava nos versos do poeta espanhol Garcia Lorca. A Balada estreou no Luna Park, centro de Buenos Aires, no encerramento do Festival Ibero-americano de Dança e Canção, ocorrido no ano de 1969.
Segundo Ferrer revelou, numa pausa durante a montagem da ópera-tango Maria de Buenos Aires, a dupla foi assistir ao filme Le Roi de Coeur (O Rei de Coração), de Fillippe de Broca (1966). A fita trata de um soldado britânico (Alan Bates) que se refugia num vilarejo da França, após o fim da Primeira Grande Guerra. Lá estavam liberados os loucos do manicômio da cidade: o soldado viu que os loucos tinham um enfoque da vida melhor que aqueles que viviam fora do manicômio. Eis a inspiração para a Balada para un loco. Ao afinar o concerto, como se estivessem em transe, num orgasmo alucinante, um fazia a leitura teatral do seu poema, enquanto o outro fazia e refazia os reparos da pauta musical, para enfim concluirem a melodia: temos um míssil em nossas mãos, disparou um para o outro.
Na primeira apresentação da Balada para un loco, a interprete Amelita Baltar, a primeira esposa de Ferrer, foi tragada pela emoção da plateia que lhe hostilizava. Começou a declamar os versos: Las tardecitas de Buenos Aires tienen esse que sé yo, viste? salgo de casa por Arenales, lo de siempre en la calle y en mí, cuando de repente... O público foi-se tomando de profunda reverência e de pé passou a aplaudi-la até o final da apresentação. Amelita de tanto forçar a respiração, enquanto cantava, rompeu o vestido na parte de traz, tendo de ausentar-se do palco em marcha-ré, para chegar na coxia. Embora não tenha granjeado a vitória perante o juri popular do Festival, - de que o poetinha Vinicius de Morais era um dos jurados - a Balada vendeu 200 mil cópias, sucesso imediato na semana que sucedeu a festa.
Horacio Ferrer residiu no apartamento de Piazzolla, na Avenida Libertador e, com a morte do seu parceiro, em 1992, passou a ocupar um dos apartamentos do Hotel Alvear, no decaído centro boêmio de Buenos Aires, onde faleceu. Enquanto crescia a sua popularidade, ao final da segunda metade do século, assistiu o crescimento da hegemonia política do peronismo. Faz sentido o diversionismo da temática musical do tango, extravasando o sentimentalismo imposto às massas obnubiladas, ao tempo em que se consolidava o mito da la Dama de la Esperanza, La jefa Espiritual de la Nación, em que pontificava Evita, a saldo do presidente Peron, na ação deletéria de controle do país. A par da difusão radiofônica dos efeitos vocais inebriantes de um Carlos Gardel, nada mais longevo do que a criação poética/melódica de Piazzolla e Ferrer, para sublimar as dores do coração sofrido, enquanto o peronismo se consolidava no poder político. 

Na vida atribulada de boêmio, compositor, cantor e poeta/letrista, Horacio Arturo Ferrer antecipou a sua legião de admiradores o sentimento premonitório de sua morte. Buenos Aires querida, a sua segunda pátria, dera curso ao seu talento, onde galgou o prestígio popular de suas composições. Foi lá, entre os portuários enamorados que caminhavam pela vida que, apesar dos pesares, no ano de 1971, compôs com Piazzolla a Balada para mí muerte. Há na canção um destino imanente, uma predeterminação de seu passamento ocorrer em Buenos Aires, naquela rua e no momento em que assistia decair a boemia, perenizadas as lembranças das casas de abajur lilás, a poesia, o tabaco e o tango que lhe fizeram feliz a si a aos outros, por toda a vida. Saber morrer na hora certa, em que morrem consigo as melhores tradições, no apagar do verso de quem soube antecipar: Moriré em Buenos Aires, será de madrugada, guardaré mansamente las cosas de vivir,/ mi pequeña poesia de adiosas y de balas, mí tabaco, mí tango, mí peñado de esplin. ... /Moriré en Buenos Aires, será de madrugada,/ que es la hora en que mueren los que saben morir./ Flotará en mí silencio la mufa perfumada/ de aquel verso que nunca yo te supe decir.

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