FACE OCULTA
Valério
Mesquita*
Contemplo do alto a floresta de edifícios de Natal e me sinto
soterrado nas fundações. Não consigo emergir à superfície de suas vaidades. A
cidade virou feira de remarcações e os falsos valores estão arrematando caráter
em banda de lata. Nunca a urbe dos reis magos sofreu tanto da coluna vertebral.
Prefiro aquela pacata cidadela que não depositava caráter em conta bancária.
Havia concórdia entre os cidadãos e amizade entre os vizinhos. Era o tempo em
que a insônia provocada pela riqueza fazia emagrecer. Hoje, os sócios ocultos
do erário público dormem com a justiça e celebram com a crônica social.
Dia passado, num escritório de advocacia assisti uma cena típica
dos novos tempos. Ao telefone, um conhecido causídico homenageava o seu
escritório revelando que recebia a visita de fulano de tal, político, médico e
agora vivendo apenas da profissão. Era uma carta fora do baralho das riquezas
emergentes. O obstetra aguardou curioso do outro lado da linha uma referência
elogiosa mas não veio. O advogado desligou parecendo constrangido na fisionomia
como se arrependido estivesse pela citação do visitante. Constrangimento. Ao
lado, entendi que o médico passará a figurar como paciente da UTI dos novos
lisos do Rio Grande do Norte. Virava estatística entre os decaídos. Assim é
Natal, a cidade que mais negocia apartamentos no nordeste do País. Onde se
conhece o preço de tudo e não se sabe o valor de nada. Muitos cobram comissão e
não pagam dízimo a igreja mais próxima.
A difusa fluidez temporal da vida não comove o insensato que
segrega o próximo e que não pensa na noite sem face e derradeira do ataúde.
Outro dia foi a vez de um mequetrefe, assessor funcional de uma fundação
estadual, que demonstrou sua vocação mórbida de bajulador e subserviente por
dissimular e “resguardar” o seu chefe de contato com os que desejam dialogar
sobre o serviço público. Deve viver numa jaula, limitado às imposições de uma
vida miúda, repleta de frustrações. Outro aspecto digno de nota é o daqueles
que, diante do infortúnio alheio, ancoram suas amarras na mais profunda
indiferença. Amizade para eles virou interesse, esbulho, vantagem, lucro,
contrato leonino, no qual é sempre beneficiário. Perderam a densidade moral, a
identidade, a musculatura dos gestos e dos passos que fazem história.
Hoje, em nossa capital, ainda se fala sobre Zé Areia, Newton
Navarro, Câmara Cascudo, Alberto Maranhão, Augusto Severo, Albimar Marinho e
tantos outros nomes da boemia, da política, da literatura, da medicina, da
advocacia, etc. Mas os atuais poderosos da elite social que impõem iniqüidades
à mídia não serão lembrados amanhã porque nada fazem por Natal. Saqueiam-na.
São os predadores de plantão, os negocistas.
Ante o espanto de uma Natal de alma dilacerada preciso recuperar
minha auto-estima. Deduzo que a burguesia não fede. Abomináveis são as rugas de
sua infinita vaidade e grave insensibilidade estampadas no rosto dos jornais.
Enquanto isso, nós, cristãos imolados do “baile fiscal” continuaremos lavrando
o nosso campo ensanguentado de acácias douradas dos jardins de Natal.
Para encerrar, após um chatérrimo fim de semana de longa travessia
do horário eleitoral, lembrei-me que até agora as autoridades da saúde
municipal, nada fizeram para enfrentar a invasão iminente dos mosquitos da
dengue. Os infectologistas já alertaram sobre o perigo dos imóveis desocupados,
mas fechados. Enquanto isso, do fundo eleitoral tem dinheiro pra tudo. Essa
vida é mesmo um ziguezague de contradições. E por outro lado, os pobres gemem
nos hospitais sob o peso da matéria maldosa do escárnio.
(*) Escritor.
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