sexta-feira, 27 de outubro de 2023

 

A ALMA DAS CIDADES


- Horácio Paiva *



A Alma das Cidades é o título de um de meus poemas, habitante de meu livro “A Torre Azul”. Mas é também a representação do status subjetivo da cidade, a aura de cada cidade, para cada um de nós, particularmente.


Dessa forma, essa impressão subjetiva da cidade, essa alma, transcende o sentimento comum, e se, em determinados momentos, a alguns desperta alegria, a outros, sobretudo aos que mais a vivenciaram, pode sugerir nostalgia.


Sim, porque tudo é vida, e todas as cidades são eternas e mortais... Mesmo Roma, chamada de eterna, tem ruínas à vista.


Quando a eternidade se sobrepõe - e sempre se sobrepõe, ao negar o tempo -, abre espaço para nosso voo íntimo, e esse sentimento, que a arte, em alguns momentos, chamou de impressionismo, toma conta de nosso espírito, molda nossas sensações, faz crescer nossa identidade e nos leva a quebrar paradigmas... E cada um passa a ter direito a um espaço ontológico ilimitado, a explicar-se conforme esse mundo gigante.


É isso que me faz associar o lugar onde vivi a qualquer um outro, com mais ou menos semelhanças entre si, já que ambos pertencem ao meu íntimo e falam às minhas emoções existenciais e estéticas. Tal o que me ocorre quando escuto, por exemplo, o “Estro Armonico”, de Vivaldi, e me vejo ora em Veneza e ora em Macau. É que Vivaldi costuma ir à minha infância, e minha infância é Macau.


Diz Santo Agostinho que as lembranças são a essência do passado, e faz essa reflexão: “Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras.” E acrescenta: “Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras.” (“Confissões”, XI, 20).


Mas se as lembranças são a essência do passado, não seriam elas também a base da nostalgia? E se a nostalgia pertence ao tempo que morreu, não seríamos nós também uma sucessão de mortos em relação aos atos e fatos passados com nós mesmos, já que não podemos mais neles interferir?


Macau, porém, é mais que lembranças, e caminha comigo. Como Deleuze, sustento a realidade do passado e sua conexão com o presente e o futuro. É o que digo nesse meu haicai, a que pus o título “Em Macau”:


Estou em Macau -

as lembranças

caminham comigo.


Esse olhar sobre a cidade é um olhar sobre nós mesmos e que se justifica na adequação particular entre espaço, tempo e circunstâncias. Daí pensarmos a cidade como uma responsabilidade nossa e a sua vitória e derrota são vitória e derrota nossas.


Há uma frase do grande poeta e libertário José Martí, que sempre trago comigo e que diz: “No hay más que un medio de vivir después de muerto: haber sido un hombre de todos los tiempos - o un hombre de su tiempo” (“Não há mais que um meio de viver depois de morto: haver sido um homem de todos os tempos - ou um homem de seu tempo”).


No espaço de meu tempo, circunstâncias e afinidades, algumas cidades disputam, ou, melhor, formam meu coração: Macau, Natal, Recife, Lisboa e Veneza. Em todas essas águas há o navegar de um navio azul imaginário, a Nau Catarineta. Mas o cais é Macau, toda Macau, a eterna.


Vamos ao poema:


A ALMA DAS CIDADES


A cidade passou

antes de mim.

E não houve adeus.

Perdeu-se

no caos incontrolável

da impermanência.


E quando vi que passara

com seu séquito mudo

retirei-me.

Sem olhar para trás...


Anjos

- que não sabem que são anjos -

vieram ao meu encontro

e serviram-me.


Ainda não morri,

concordo.

Mas a alma de minha cidade

não existe mais.



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(*) Horácio de Paiva Oliveira - Poeta, escritor, advogado, membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA.

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