A verdade e a mentira
Padre João Medeiros Filho
É conhecido o quadro intitulado “A Verdade saindo do poço”, do pintor francês Jean Léon Gerôme. A obra é inspirada numa antiga parábola de origem judaica. Ela narra que a verdade e a mentira, em um dia ensolarado, saíram para caminhar e encontraram um poço. Resolveram banhar-se, pois a temperatura da água estava convidativa. Cada uma tirou a roupa, e entraram n’água. Em dado momento, a mentira maliciosa, aproveitando-se da distração e pureza da verdade, esgueirou-se e vestiu as roupas de sua acompanhante. Quando esta terminou o seu banho, sentiu-se ludibriada e recusou-se a usar os trajes da mentira. Saiu desnuda pelos campos e aldeias para desmascarar a rival. A mentira vestida, passando-se pela verdade, era acolhida pela população. Entretanto, ouviam-se impropérios e condenações contra a enganada e traída, que estava despida. Moral da história: não raro, as pessoas estão mais propensas a acatar a mentira com aparência de verdade do que enfrentar a realidade nua e crua.
Eis uma metáfora dos seres humanos – frequente nos dias atuais – em que notícias falsas soam como verídicas, mostrando-se com trajes enganosos. Aquilo que é ostentado com requinte na mídia ou nas redes sociais, nem sempre é autêntico ou goza de veracidade. Hoje, muitos consomem tempo e dinheiro com ostentações, que podem ocultar situações desprezíveis, individuais e sociais. A maquiagem (particular e pública) vem se tornando um artigo indispensável, no dia a dia de vários indivíduos. A aparência ardilosa e ilusória está se tornando cada vez mais constante. Por exemplo, atualmente, não faltam procedimentos estéticos e cirúrgicos para dissimular imperfeições ou aspectos não aceitáveis. Esteticistas e cirurgiões plásticos passam a exercer um papel crucial na busca da felicidade de muitos. É uma das aplicações da parábola aqui citada. Tenta-se apresentar o inverídico e dissimulado como verdadeiro e real. Isso acontece também na política e na vida pública. A inverdade camufla-se no sofisma, “o qual é a forma sutil e aparentemente científica da mentira”, segundo o filósofo Duns Escoto.
Outra característica do momento é a exposição da imagem. Há tecnologias e meios de comunicação especializados em produzir disfarces. O “photoshow” tornou-se um instrumento corriqueiro. Fotos veiculadas nas redes sociais e na mídia são produzidas para provocar impacto e, na medida do possível, iludir. Existem alguns deontologistas pregando a Ética da Estética diante do que é “fake” (em difusão de notícias, publicidades, comportamentos etc.). Há os que exultam com certas imagens buriladas e sequer perguntam se correspondem ao real. Não faltam aqueles que teimam em disfarçar seus cabelos brancos, como se isso conseguisse modificar a idade cronológica. O mesmo tipo de dolo acontece no mundo do marketing, dos relacionamentos, da política, da religião etc. Infelizmente, nos tempos de hoje, reina a cultura da falsidade. E a maioria das pessoas se acomoda a este estilo de vida. Por vezes, somos preparados para esconder nossa verdadeira condição e a viver das aparências. Cristo já alertava: “Que o vosso sim seja sim, e o vosso não seja não. O que passa disso vem do Maligno.” (Mt 5, 37).
É próprio do ser humano querer revelar um conceito de si mesmo diferente da realidade. Nem sempre somos tão bons, justos, generosos, honestos e leais como pensamos e desejamos que os outros acreditem. Isso já era denunciado pelo Mestre da Galileia, diante da hipocrisia de seus contemporâneos. “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Sois semelhantes aos sepulcros caiados, por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossadas e podridão. Assim também vós: por fora, pareceis justos diante dos homens, mas, por dentro, estais cheios de hipocrisia e iniquidade.” (Mt 23, 27). Dar-se conta disto é o caminho para se chegar à verdadeira ipseidade. O mundo das aparências traz consigo o peso da escravidão. Assim também é na vida pública, familiar e social. Descobrir a verdade sobre nós mesmos, sobre aquilo que nos cerca, é o início da nossa libertação. Santo Anselmo, arcebispo de Cantuária (século XI), pregava: “a verdade é filha predileta de Deus e a mentira procede do demônio!”
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