Sanfoneiro
e cantor encarnou o lado sensível da música regional nordestina
Trecho de Tenho sede, de Dominguinhos e
Anastácia: “Traga-me um copo d’água, tenho sede / e essa sede pode me matar. /
Minha garganta pede um pouco d’água / e os meus olhos pedem o teu olhar”.
Reinado absoluto. O sanfoneiro
toca em Caruaru em 2007
“O sertanejo é antes de tudo um forte”, sapecou
Euclides da Cunha em “Os sertões”. Os desavisados reconhecerão na definição o
protótipo do cangaceiro, do cabra macho, do matuto destemido que não leva
desaforo para casa. Ledo engano. Como o próprio Euclides deixou claro, essa
força não reside na coragem, na valentia ou no destemor, mas repousa na
improvável força interior contida no termo euclidiano Hércules-Quasímodo. O
sanfoneiro, compositor e cantor Dominguinhos encarnou o lado sensível, belo e
pungente dessa força, contrapondo-o à valentia da cabroeira que dormia ao
relento e lutava contra as tropas da lei e da ordem. Lampião era o
sertanejo-mandacaru. Dominguinhos, o matuto-flor: a flor que brota do cacto com
a beleza protegida pela agressividade bélica dos espinhos.
Desde cedo ungido príncipe da música regional
nordestina que o Rei Gonzaga fundou e sustentou com o rebuliço mágico dos 180
baixos de sua sanfona, o garoto de Garanhuns, Pernambuco, cruzou as veredas da
vida sem trocar de patente nem de coroa: sempre foi menino, sempre foi
príncipe. Consciente da majestade de seu Lua, legitimada pela dimensão
universal de sua herança, a grandeza dele, caudatária da simplicidade, o tornou
herdeiro perpétuo, impedindo-o de subir ao trono com o desaparecimento físico
do criador do forró. Não se confunda, contudo, essa simplicidade com complexo
de inferioridade ou desconhecimento do próprio potencial que levou Gonzaga a
lhe transferir sanfona, cetro, reinado e gibão. Nada disso: mantendo-se na
infância, ele preservou o segredo da beleza e da variedade da obra que o
fundador trouxe das brenhas para transformar no ponto de contato e de
solidariedade dos deserdados da seca no bulício das metrópoles.
Em Dominguinhos comungavam a humildade dos mansos
de espírito e a altivez dos gênios que reconhecem seu valor ao identificá-lo
não nas glórias da fama, mas na consciência da fidelidade a sua grei, que a
retribui com um amor mudo, sincero e pleno, que vai além do aplauso fácil. Este
reconhecimento passou, é claro, pela unção real, mas se confirmou em todos os
contatos que o artista manteve com seu público, gente com quem partilhava as
mesmas origens e com quem se comunicava pela mudez de cúmplices egressos dos
mesmos roçados nos quais a necessidade e a escassez tornam a solidariedade
gênero de primeira necessidade. Esse povo aprendeu a linguagem das pausas
longas e o reconhecimento da labuta na textura áspera da pele da palma da mão
acostumada com a soleira que ofusca e a aridez do solo de pouca água.
Se o Rei do Baião fez de Asa Branca, com a letra
do urbano Humberto Teixeira, o hino da diáspora nordestina pelo mundo afora, o
príncipe da sanfona compôs em Lamento Sertanejo, com a letra-síntese de
Gilberto Gil, negro e interiorano qual Gonzaga, a saga do retirante aculturado.
“Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação, / eu te asseguro, não
chore não, viu, / eu voltarei, viu, pro meu sertão”: Gonzaga e Teixeira
cantaram o mito da volta do homem à terra, bastando que caia a chuva do céu.
“Por ser de lá, / na certa por isso mesmo, / não gosto de cama mole, / não sei
comer sem torresmo. / Eu quase não falo, / eu quase não sei de nada. /
Sou como rês desgarrada / nessa multidão boiada caminhando a esmo“ – na
melodia de Dominguinhos Gil decretou a saga de um Ulisses-Quasímodo que não
retorna a Penélope, mas faz do desassossego solitário o jeito de ficar onde
estiver, construindo Ítaca em si mesmo.
A Odisseia do cantor do vale do Araripe, nos
confins onde Pernambuco acaba no Ceará, foi registrada no percurso do peixe em
Riacho do Navio, com letra do parceiro Zé Dantas, partindo do Atlântico na
direção do paraíso idílico perdido nas margens do riacho da Brígida, contra a
correnteza. Essa busca do cordão umbilical enterrado na porteira do curral
avoengo se expressa na utopia do desterrado: “Pra ver o meu brejinho, / fazer
umas caçada, / ver as ‘pegá’ de boi, / andar nas vaquejada, / dormir ao som do
chocalho / e acordar com a passarada, / sem rádio e sem notícia / das terra
civilizada”.
A Ilíada do sanfoneiro da “Suíça nordestina”
mantém o desterrado no desterro, universo transportado de Garanhuns para os
guetos nordestinos nas metrópoles – o Brás em São Paulo, o Campo de São
Cristóvão no Rio… Nesses lugares, o cavalo de madeira transporta o retirante
para os ambientes urbanos, tornando-o uma espécie de extra-terrestre adaptado
aos hábitos e à cultura da Troia que desconhecia. O retirante pede água, busca
o amor e vai ficando: a obra de Dominguinhos é a consciência de que todo lugar
é sertão e o sertão é aqui mesmo, reconhecido nas manchas de suor tornadas
mapas da solidão que virou ritual de encontro. Como cantou em Tenho sede, com
letra de Anastácia, sua mulher e parceira de origem: “Traga-me um copo d’água, tenho
sede / e essa sede pode me matar. / Minha garganta pede um pouco d’água / e os
meus olhos pedem teu olhar”.
(Publicado na Pag.D03 do Caderno 2 do Estado de
S. Paulo de quarta 24 de julho)
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