COMBATE ÀS TREVAS – V
(A QUESTÃO DAS DROGAS-VISÃO DERROTISTA)
Por Luiz Eduardo Soares
TN - 22 de Julho de 2012
Os últimos 30 anos da história ocidental comprovam que é "impossível" combater o tráfico de drogas, diz o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ao narrar o envolvimento do brasileiro Ronald Soares com as drogas, no seu recente livro Tudo ou nada (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012). "Não se trata de uma opinião, mas de constatação empírica", declara à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. Segundo ele, foram gastos "bilhões de dólares na guerra contra as drogas e o tráfico vai muito bem, obrigado. O lucro permanece, a demanda se mantém mesmo nos países que possuem as melhores polícias e os mais sofisticados mecanismos de controle, como os Estados Unidos".
Soares explica que alguns fatores viabilizam a expansão do tráfico de drogas, como a criminalização e "a proibição, sem a qual não poderia realizar-se esse comércio em condições tão lucrativas e tão predatórias para o consumidor". Diante dessa conjuntura, o ex-secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro questiona: "Ora, se esse é o fato e se é impossível revogá-lo, a interrogação racional deixa de ser 'deve-se ou não permitir o acesso' para formular-se nos seguintes termos: 'Em que contexto institucional-legal seria menos mal que tal acesso ocorresse? O contexto em que drogas fossem questão relativa à polícia e prisão, isto é, à Justiça criminal? Ou o contexto em que drogas fossem matéria de educação e saúde, cultura e autogestão social?" E dispara: "Resta-nos superar preconceitos e ignorância, e adotar vias alternativas. O pior flagelo, entre as drogas, são o álcool e a nicotina. Mesmo assim, ninguém está propondo, felizmente, sua proibição".
Na entrevista a seguir, Luiz Eduardo Soares antecipa a história do brasileiro Ronald Soares, preso em Londres por associação ao tráfico de drogas, e posteriormente no Complexo Penitenciário de Bangu, no Rio de Janeiro, apontando as diferenças e aproximações entre os sistemas penitenciários. "Ambas são destrutivas, mostrando que a privação de liberdade representa, sempre, uma degradante violência estatal", assegura.
Luiz Eduardo Soares é mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional-UFRJ, doutor em Ciência Política pelo IUPERJ, e pós-doutor em Filosofia Política pelas universidades de Virgínia e Pittsburgh. Foi fundador e primeiro coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Violência do Instituto de Estudos da Religião - ISER em 1991, onde desenvolveu várias pesquisas até janeiro de 1995. Entre janeiro e outubro de 2003, Luiz Eduardo Soares foi secretário nacional de Segurança Pública. Foi também subsecretário de Segurança Pública e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania no governo de Anthony Garotinho, entre janeiro de 1999 e março de 2000. Foi professor da UERJ e da Universidade Cândido Mendes. É autor de onze livros, entre eles Meu casaco de general: 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), Pluralismo cultural, identidade e globalização (Rio de Janeiro: Record, 2001) e Elite da tropa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2005), este escrito com Rodrigo Pimentel e André Batista. Atualmente é coordenador do curso de especialização em Segurança Pública da Universidade Estácio de Sá. Confira a entrevista.
A partir da história de Ronald Soares, que tinha um futuro promissor, o que motiva e fomenta o tráfico internacional de drogas?
Todo negócio, legal ou ilegal, é motivado pela busca do lucro e é viabilizado pela existência de oferta e demanda. No caso do tráfico, o fator que fomenta é a proibição sem a qual não poderia realizar-se esse comércio em condições tão lucrativas e tão predatórias para o consumidor. No livro mostro que cada tonelada que sai da selva colombiana é multiplicada por seis até o varejo, na Europa. Esse análogo perverso do "milagre dos pães" resulta da mistura das mais diversas e nocivas substâncias à cocaína pura. Sabe-se, aliás, que tais substâncias são muito mais lesivas do que a coca.
Que fatores favorecem a comercialização de drogas atualmente? Por que o tráfico de drogas é um dos mais difíceis de ser combatido?
O que favorece, ou melhor, torna possível a existência dessa rede ultralucrativa chamada tráfico de drogas tal como ela se dá é a sua criminalização. Combater o comércio de drogas não é difícil: é impossível. Pelo menos em contexto político não totalitário. Não se trata de uma opinião, mas de constatação empírica. Basta observar o que ocorreu nos últimos 30 anos no mundo ocidental. Foram gastos bilhões de dólares na guerra contra as drogas e o tráfico vai muito bem, obrigado. O lucro permanece, e a demanda se mantém mesmo nos países que possuem as melhores polícias e os mais sofisticados mecanismos de controle, como os Estados Unidos. 30 anos não são suficientes para revelar uma realidade e confirmar um diagnóstico? Vamos continuar fazendo mais do mesmo?
(grifos nossos)Qual, então a resposta para estas perguntas que o senhor levanta?
Quanto à pergunta sobre a razão da dificuldade (ou impossibilidade, fora dos totalitarismos) de reprimir, posso responder com outra indagação: por que os EUA venceram a guerra-fria? Entre os motivos, destaca-se a inviabilidade de anular o mercado quando há demanda e oferta. Pode-se disciplinar o mercado, regulamentá-lo, domesticá-lo e circunscrevê-lo, submetendo-o a regras etc. Porém, suprimi-lo é um objetivo insustentável. Na economia das drogas ilícitas, aplica-se o mesmo princípio. Eis a evidência: o acesso às drogas ilegais é uma realidade em toda sociedade não totalitária industrializada. Ora, se esse é o fato e se é impossível revogá-lo, a interrogação racional deixa de ser "deve-se ou não permitir o acesso" para formular-se nos seguintes termos: "Em que contexto institucional-legal seria menos mal que tal acesso ocorresse? O contexto em que drogas fossem questão relativa à polícia e prisão, isto é, à Justiça criminal? Ou o contexto em que drogas fossem matéria de educação e saúde, cultura e autogestão social? A primeira via tem sido experimentada pelo Brasil com resultados trágicos: o consumo de drogas não declina, o tráfico prospera, alimentando o negócio de armas, a corrupção policial e gerando mortes e violência, enquanto as prisões acumulam jovens pobres, com baixa escolaridade, em sua maioria sem vínculo com armas ou organizações criminosas e sem praticar violência. Essa via tem se mostrado inequívoco desastre. Resta-nos superar preconceitos e ignorância, e adotar vias alternativas. O pior flagelo, entre as drogas, são o álcool e a nicotina. Mesmo assim, ninguém está propondo, felizmente, sua proibição.
Em que sentido pode-se dizer que o tráfico de drogas é um dos pilares da violência urbana?
Quanto ao tráfico ser um pilar da violência, parece-me que sim, porque sua dinâmica movimenta lucros que se aplicam parcialmente em armas, as quais servirão para vários propósitos, sempre destrutivos. Ou seja, o tráfico de drogas é uma fonte de financiamento do tráfico de armas e um indutor de práticas violentas, nas disputas por mercado e com as polícias.
Como são os bastidores desse mundo quase desconhecido, do tráfico internacional de drogas?
O livro mostra como funcionam esses bastidores. Claro que há muitas estruturas diferentes e muitos métodos distintos para levar diversos tipos de drogas de um ponto a outro do planeta. O que a biografia do personagem real permite descrever é o transporte de algumas toneladas, todo ano, por mar, da Colômbia à Inglaterra, passando pela selva e pelo Caribe. Como isso é feito... bem, não teria como resumir. Há mil e um aspectos e detalhes, os quais, no livro, se convertem em suspense e aventura. Não gostaria de estragar o prazer da leitura. Se o livro tem valor, ele deve seduzir, emocionar, encantar os leitores e surpreendê-los a todo o momento. Não precisei ser imaginativo para alcançar esses objetivos ambiciosos. Bastou ser fiel à realidade.
Como a questão da violência aparece intrinsecamente na história de Ronald Soares?
Ronald nunca pegou em armas e sempre abominou a violência. Isso não o isenta, entretanto, de responsabilidades, porque o tráfico, mesmo quando praticado como um grande negócio empresarial, está ligado a máquinas de morte. Numa ponta está a inteligência asséptica; na outra, a brutalidade letal. Tratar de um lado sem olhar para o outro reduz o sentimento de culpa, mas não anula a responsabilidade. Eu mostro no livro como funciona a máquina de morte, na contramão das intenções e do pendor do biografado.
Como a experiência do aprisionamento modificou o jovem Ronald? Em que sentido o cárcere transforma o sujeito?
Muito jovem, recém-saído da universidade, o economista brilhante fez fortuna e aderiu à idolatria yuppie do mercado, em sua acepção darwiniana, competitiva, individualista e feroz. Entretanto, esse caminho significava uma traição aos sonhos hippies de adolescência, nos quais o ideal era a valorização da paz e do amor, do hedonismo e da natureza. Diante de uma dramática desilusão amorosa, que o joga numa tremenda depressão, Ronald toma consciência de que estava traindo a si próprio ao abandonar suas utopias, assim como fora traído pela belíssima esposa e pelo melhor amigo. Decide, então, abandonar a fortuna que conquistara, comprar um veleiro e lançar-se ao mar. Navega pelos oceanos por dez anos, no fim dos quais acaba se aproximando do cartel de Cali, por labirintos existenciais quase inverossímeis. E aí começa a fase negativa de sua vida, que o conduzirá a celas claustrofóbicas, a uma condenação na Inglaterra a 24 anos de prisão.
O biografado foi submetido ao julgamento mais longo da história inglesa: 14 meses. Por ter tentado uma fuga cinematográfica, foi classificado como o preso mais perigoso da Inglaterra e permaneceu em penitenciária de segurança máxima, sozinho. Enfim, foi transferido para o Brasil e cumpriu o final da pena em Bangu. Esteve perto da loucura, sofreu alguns abalos psíquicos gravíssimos, mas conseguiu sobreviver e restaurar a lucidez. Hoje, livre, reconstruiu sua vida, trabalha e se dedica aos filhos, que jamais o abandonaram e que constituíram, conforme ele mesmo diz, a grande usina de energia na qual alimentou sua resistência à loucura e aos sofrimentos.
Quais foram as diferenças fundamentais entre os períodos de encarceramento em Londres e no Rio de Janeiro? Em que aspectos os sistemas prisionais dessas duas cidades diferem e se aproximam?
Na Inglaterra, as instituições penitenciárias são rigorosamente regidas pela legalidade, ninguém toca a mão em um preso, nem o agride verbalmente. As celas são tão limpas quanto salas cirúrgicas. No entanto, seu poder de destruição mental é devastador, por uma série de mecanismos sutis que descrevo no livro. No Brasil, impera a imundice, a promiscuidade, as violações aos direitos, o desrespeito à Lei de Execuções Penais. Ambas são destrutivas, mostrando que a privação de liberdade representa, sempre, uma degradante violência estatal. Por isso deveríamos recorrer a esse expediente apenas em casos extremos, que envolvam violência e impliquem riscos para inocentes. Casos para os quais não conhecemos, ainda, infelizmente, qualquer alternativa realista (grifos nossos).
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