POR
QUE O EDUCADOR PAULO FREIRE TANTO INCOMODA A ELITE BRASILEIRA?
(As origens da “Escola sem Partido”)
Geniberto
Paiva Campos, Brasília, janeiro, 2019
Quando estudante
universitário, aluno da Faculdade de Medicina da UFRN, década de 1960, tive a oportunidade
de trabalhar com o professor Paulo Freire na implantação do projeto de
alfabetização de adultos. Que prometia alfabetizar esse grupo etário em 40
horas.
À época as taxas de
analfabetismo no Brasil eram vergonhosas. E não eram diferentes no estado do
Rio Grande do Norte.
A Educação era um tema
prioritário na pauta de políticas públicas.
E a alfabetização era o foco das preocupações das mais diversas
instituições locais: Igreja Católica, a Prefeitura Municipal de Natal e o
Governo do Estado. Correndo por fora, a Academia lutava pela criação da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, cuja concretização se deve à luta incessante, (quase
quixotesca, enfrentando os moinhos de vento da burocracia), junto às
autoridades federais, do professor Onofre Lopes, conceituado profissional, integrante
do quadro de professores da Faculdade de Medicina. Depois reitor da UFRN.
Na área da alfabetização
projetos modernos eram desenvolvidos. Ousados para a época, extremamente
criativos, na tentativa, através do uso inteligente dos recursos didáticos
então disponíveis, de vencer um imenso desafio: retirar amplos segmentos
populacionais das chamadas “trevas do analfabetismo”.
As “escolas radiofônicas” da Arquidiocese de Natal foi o projeto
educacional que utilizou, de forma pioneira, recursos tecnológicos – no caso o
rádio – precursor da educação à distância. D. Eugênio Sales, então arcebispo,
atribuía alta prioridade ao projeto. E recrutou jovens estudantes
universitários para atuar como educadores. Que cumpriram muito bem sua missão.
A “campanha de pé no chão também se aprende a ler”, da Prefeitura de
Natal, tornou-se um marco importante na demonstração cabal de que a educação de
qualidade não dependia da construção de prédios suntuosos. As escolas, ou “acampamentos escolares”, cumpriam as suas funções educativas em
construções singelas, de cobertura de palha de coqueiro e chão de barro batido
que acolhiam centenas de crianças. Cumprindo funções didáticas altamente
eficientes. Atraídas pela recreação e a merenda. A Campanha era coordenada pela
professora Margarida de Jesus Cortez. O prefeito Djalma Maranhão e o secretário
de educação Moacyr de Góes, também atribuíam prioridade máxima ao programa. A
Campanha evoluiu para “De Pé no Chão
também se aprende uma profissão”, sob a coordenação do estudante de
engenharia Josemá Azevedo. E do professor Omar Pimenta.
E o Projeto de Angicos, de alfabetização de adultos, da secretaria de
educação do Governo do Estado, governador Aluizio Alves, secretário de Educação
Calazans Fernandes, o qual adotou o método Paulo Freire de alfabetização em 40
horas, com a participação de estudantes universitários, sob a coordenação do
então estudante de direito, Marcos Guerra. E eles comprovaram que o método
funcionava.
(Chama a nossa atenção que
pessoas de diferentes visões políticas, guardassem um posicionamento tão
coerente sobre a questão educacional).
O Brasil vivia então um
clima de alta efervescência política. Que iria resultar no golpe de estado de
1964. A chamada Guerra Fria, iniciada ao final da Segunda Guerra, buscava
produzir resultados concretos na América Latina, através da derrocada de
regimes democráticos, substituídos por ditaduras violentas e sanguinárias.
Brasil, Chile, Argentina, Uruguai representaram a sequência de golpes armados
que, sob o pretexto de salvar o regime democrático, iriam colocar a Democracia
em longo recesso na região.
O Golpe de 1964 assumiu a
área da Educação como alta prioridade, mas em sentido inverso. Pessoas e instituições
envolvidas em programas de alfabetização tornaram-se suspeitas de subversão. Presas, foram perseguidas, exiladas. Foram
cassados seus direitos políticos. Exatamente porque ensinavam as primeiras
letras ou uma profissão, a crianças, jovens e adultos. E utilizando métodos
didáticos de vanguarda. Para os novos donos do poder, um grave crime político.
Decorridos pouco mais de
meio século desses relevantes eventos, emergem dois fatos difíceis de serem
negados:
1.
A colonização ibérica deixou suas marcas na
América Latina. Uma delas o controle do pensamento. Particularmente no Brasil,
os colonizadores portugueses tinham como dogma controlar o acesso da população
– mesmo em sua grande maioria iletrada - sobre livros e outras publicações e
manifestações do livre pensamento universal. Que consideravam uma ameaça ao
rígido controle que julgavam essencial à manutenção da paz e tranquilidade da
população colonizada, mantendo-a na ignorância, mas obediente e servil. Conservá-la
na ignorância, ou no mínimo sob rígido controle, tornou-se uma espécie de
objetivo permanente. Daí a suspeição provocada entre os pioneiros dirigentes
lusitanos sobre todas as formas do livre pensar. O analfabetismo não era,
portanto, uma “falha” no processo colonial. Era um objetivo essencial. Escolas,
faculdades, universidades eram uma espécie de “locais suspeitos”. O surgimento
das universidades entre nós foi um processo lento, com grande retardo histórico
e pouco estimulado. Mesmo após a conquista da Independência. E a nossa elite,
herdeira do preconceito colonial, para sempre comprometida com o atraso, soube
muito bem preservar essa conduta.
2.O
que é a “Escola sem Partido” senão a
revelação da permanência desse eterno compromisso com o obscurantismo, em pleno
século 21? Por que tanto receio quanto às ideias e a mensagem do professor
Paulo Freire? Apenas porque ele ensinava
os seus educandos a distinguir, durante o processo educacional, a consciência ingênua da consciência crítica? E mais, que a educação
não poderia ser um processo descontextualizado da realidade? Aliás, por que
tanta manifestação de infundados receios com a educação moderna e a tentativa –
inútil – mas assumida sem o menor pudor pelo conservadorismo, de querer
controlar o processo educacional, fazendo-o regredir, sob o pretexto de evitar
a partidarização das escolas? Isso em plena era da Tecnologia da Informação e
da Inteligência Artificial?
Finalmente, para os que
gostam de pensar livremente, transcrevemos a crítica do sociólogo e cientista
político Yuval N. Harari (1):
“A Revolução Industrial deixou-nos como legado a teoria da linha de
produção da educação. No meio da cidade existe um grande prédio de concreto
dividido em muitas salas idênticas, cada sala equipada com fileira de mesas e
cadeiras. Ao soar uma campainha você vai para uma dessas salas junto com outras
trinta crianças que nasceram, todas, no mesmo ano que você. A cada hora entra
um adulto e começa a falar. São pagos pelo governo para fazer isso. Um deles
fala sobre o formato da Terra, outro sobre o passado humano e um terceiro sobre
o corpo humano. É fácil rir desse modelo, e quase todo mundo concorda que, a
despeito de suas conquistas do passado, ele está falido”.
É este modelo educacional
que adultos do século atual julgam adequado? É justo e pertinente negar a Paulo
Freire a condição de um dos maiores nomes da educação mundial? Muito cuidado,
portanto, com a propaganda política e a manipulação desonesta da Elite.
Voltemos ao Harari (1), o
qual recomenda aos jovens: “não confie demais nos adultos. A maioria deles tem
boas intenções, mas eles não compreendem o mundo. No passado, era relativamente
seguro apostar em seguir os adultos, porque eles conheciam as coisas bastante
bem, e o mundo se transformava lentamente. Mas o século 21 será diferente.
Devido ao ritmo cada vez mais acelerado das mudanças, você nunca terá certeza
se aquilo que os adultos estão lhe dizendo é fruto de uma sabedoria temporal ou de um preconceito
ultrapassado.”
(1) Yuval
Noah Harari in “21 lições para o século 21” - Ed. Companhia das Letras, 2018
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