Quando o morro descer e não for carnaval – Por Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior
Por Rosivaldo Toscano dos Santos Junior - 15/07/2015
Prólogo
O homem é o lobo do homem.
Plauto, 230 a.C. – 180 a.C
[…] A palavra! Vós roubais-la
Aos lábios da multidão
Dizeis, senhores, à lava
Que não rompa do vulcão. […]
“O povo ao poder”, Castro Alves, 1847-1871
Atribui-se a Esopo a autoria da
fábula “O Lobo em pele de cordeiro”. Diz ela que certo dia o lobo
resolveu criar um artifício para conseguir comer as ovelhas do pastor. O
que ele fez? Costurou e vestiu uma pele de cordeiro e se infiltrou em
meio ao rebanho, enganando o pastor. Tudo parecia dar certo. O lobo
sabia que o jantar estaria garantido quando foram todos levados pelo
pastor ao celeiro por volta do entardecer. Porém, logo depois o pastor
voltou para pegar um pouco de carne para o dia seguinte. Sacou a adaga e
escolheu uma das ovelhas para sacrificar. Era o lobo fingindo ser um
dos cordeiros.[1]
O lobo veste pele de cordeiro
Muito se tem falado na violência urbana
e, claro, das pretensas soluções. Como sempre, emergem os discursos de
recrudescimento das penas e da redução da maioridade penal. A
criminalidade teria como pressuposto, nessa dimensão, um ato deliberado
de maldade de um indivíduo autônomo – o lobo – que escolheu agredir os
homens de bem – os cordeiros. E em lugar da reflexão sobre os problemas
sociais decorrentes de uma civilização historicamente alicerçada na
escravidão, baseada em padrões de franca desigualdade,[2]
no individualismo e no consumismo, a solução é pensada sempre a partir
do pressuposto de que se trata de um mero problema policial. Mostraremos
como os papeis, na verdade, estão invertidos.
O presente escrito faz uma reflexão
sobre um perfil de indivíduo que não representa os oprimidos e nem os
defende, realmente. Ele é um predador. Sua argúcia está em se vestir de
cordeiro e desviar o foco do pastor para continuar predando. E assim,
ele também esteve nas manifestações de 2013, disfarçado de republicano
no meio dos cordeiros, desfraldando bandeiras contra as quais sempre
esteve contra ou nunca se importou. O presente texto não volta as
atenções para a esmagadora maioria dos cidadãos, mas para esse perfil de
indivíduo que age tal qual o lobo da fábula de Esopo. A partir de
agora, passaremos a chamá-lo de “O Lobo em Pele de Cordeiro”.
Alertamos que é preferível o diálogo até
mesmo com os reacionários autênticos ou os revolucionários inflamados,
pois esses são coerentes, não são oportunistas. O Lobo em Pele de
Cordeiro não – como será visto.
As manifestações de 2013 até hoje: o lobo estava lá
O Lobo em Pele de Cordeiro esteve também
nas manifestações, gritando junto: o “gigante acordou”. Ao contrário
dos cordeiros, ele sabia que o gigante nunca dormiu e mesmo assim o Lobo
em Pele de Cordeiro nunca deu ouvidos. Ou quando deu, foi sempre para
chamar os movimentos sociais de baderneiros, arruaceiros e que
atrapalhavam o trânsito quando ele estava indo para a academia de
ginástica ou ao shopping.
Em um país com a maior concentração de
terras do mundo, ele, o Lobo em Pele de Cordeiro, finge não entender a
razão de existirem movimentos como o MST aqui e não na Suíça, na Noruega
ou na Dinamarca. O mesmo se diga quanto aos sem-teto e tantos outros
movimentos verdadeiramente populares, pois nascidos de nossas
idiossincrasias.
O Lobo em pele de cordeiro considera
heróis e “resistência” os que lutaram contra a ditadura nazista na
França, mas aos heróis que fizeram o mesmo contra a ditadura militar
aqui, a mais pura expressão do “gigante acordado”, o Lobo em Pele de
Cordeiro os chama de terroristas e subversivos.
O Lobo em Pele de Cordeiro reclama dos
camelôs nas ruas, mas quando vai a Miami compra acima da cota e não
declara, só pra não pagar o imposto. O Lobo em Pele de Cordeiro brada
contra a carga tributária, mas omite que uma das funções dos tributos é
de redistribuir renda – e justifica que é apenas porque são mal
aplicados. Mas não luta pela probidade, pois o que ele só quer mesmo é
não gastar nada.
O Lobo em Pele de Cordeiro antes fala
mal dos programas sociais porque nunca faltou um filé no seu prato ou o
dinheiro para pagar a conta de água ou de luz. O Lobo em Pele só tem
olhos para si. Seu pronome é sempre o possessivo na primeira pessoa do
singular. Só enxerga o Cordeiro quando quer usá-lo, caçá-lo, destruí-lo,
oprimi-lo ou explorá-lo.
O Lobo em Pele de Cordeiro saiu às ruas,
disfarçado no meio da multidão, e gritou por mudanças por puro
oportunismo, pois sabia e omitia que esses problemas sociais não
nasceram ontem. Mas mesmo assim exigia resolução imediata porque também
sabia que isso seria impossível. O Lobo em Pele de Cordeiro saiu
vendendo o discurso difuso da corrupção como se fosse algo novo, mesmo
sabendo que é multissecular porque é estrutural. A ética do Lobo em Pele
de Cordeiro é bastante peculiar e seletiva.
Para ele, no caos e na desordem se
esconde a grande oportunidade porque a Constituição e o regime
democrático para o Lobo em Pele de Cordeiro são um freio aos seus
impulsos autoritários. Não lhe interessam. Por isso, aproveita-se para
posar de democrata e, ao mesmo tempo, contribuir para uma ruptura das
regras do jogo.
O Lobo em Pele de Cordeiro é contra
partidos políticos e os políticos, desde que não seja um que defenda
seus interesses imediatos ou de seus familiares ou agregados. Por isso
um sistema representativo efetivo não lhe convém porque vincula o
político a um programa. O Lobo em Pele de Cordeiro não quer o fim dos
investimentos privados em campanhas – cinicamente chamados de doações –
porque é a compra das eleições pelo poder econômico que perpetua as
oligarquias, a alcateia onde ele nasce, nutre-se e se reproduz. Os
cargos eletivos viram seu covil simbólico, onde retalharão a grande e
suculenta presa: o Estado. O Lobo em Pele de Cordeiro tem simpatia
mesmo é pelo fascismo.
O Lobo em Pele de Cordeiro é contra as
cotas raciais somente porque ferem, de alguma maneira, seus interesses
imediatos, ignorando as seculares desigualdades étnicas. Para ele, o fim
da escravatura já foi suficiente, pois o legado dela persiste e lhe
interessa.
O Lobo em Pele de Cordeiro jamais
hasteará a bandeira da regulamentação do imposto sobre as grandes
fortunas, há 27 anos só no papel. Nem lutará pela democratização da
mídia corporativa pois esta é a porta-voz da alcateia.
O Lobo em Pele de Cordeiro esteve
infiltrado nas manifestações recentes, sorridente e tirando fotos para
pôr no Facebook, mas assumiu uma postura escravista quando foi contra a
lei das domésticas, o último e vergonhoso símbolo da senzala.
O Lobo em Pele de Cordeiro aplaude
operações policiais nas favelas com pacificação à bala e mandados de
buscas coletivos e toma as mortes dos sem-voz, da plebe, como algo
natural ou inevitável para restaurar a ordem na “terra dos bandidos” –
que é sempre a periferia. Aplaude os linchamentos nas zonas pobres, mas
pede paz para si na Zona Sul. O Lobo em Pele de Cordeiro não considera
que há seres humanos nas favelas e que eles merecem o mesmo respeito que
ele.
Epílogo
Mas como na letra da música de Wilson
das Neves, chegará o dia em que o morro descerá e não será carnaval,
Lobo em Pele de Cordeiro:
“O dia em que o morro descer e não for carnaval
Ninguém vai ficar pra assistir o desfile final
Na entrada, rajada de fogos pra quem nunca viu
E vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil (é a guerra civil)
No dia em que o morro descer e não for carnaval
Não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral
E cada uma ala da escola será uma quadrilha
A evolução já vai ser de guerrilha
E a alegoria um tremendo arsenal
O tema do enredo vai ser a cidade partida
No dia em que o couro comer na avenida
Se o morro descer e não for carnaval
O povo virá de cortiço, alagado e favela
Mostrando a miséria sobre a passarela
Sem a fantasia que sai no jornal
Vai ser uma única escola, uma só bateria
Quem vai ser jurado? Ninguém gostaria
Que desfile assim não vai ter nada igual
Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga
Nem autoridade que compre essa briga
Ninguém sabe a força desse pessoal
Melhor é o Poder devolver a esse povo a alegria
Senão todo mundo vai sambar no dia
Em que o morro descer e não for carnaval”.[3]
Não é difícil antever que será como em
uma nova Bastilha. Chegará o momento do apocalipse, do juízo final dessa
civilização baseada no egoísmo cego, no consumismo desenfreado, na
exploração do outro e em relações de poder abissais. Colherá o que
plantou. As periferias invadirão a Zona Sul como em tsunami humano e em
uma só voz:
- Vamos tomar o que é nosso!
Elas bradarão:
- Nós somos o verdadeiro gigante e
sabemos que seu luxo foi fruto de nossa exploração e que você, Lobo em
Pele de Cordeiro, vergonhosamente, só valorizou o que vinha de fora –
daqueles que há séculos compartilharam com você e seus antepassados a
nossa exploração e sofrimento. Seu perfume francês, suas bolsas
importadas, suas heranças, suas roupas de marca, seus carrinhos novos e
sua vida de supérfluos foram pagos à custa do nosso suor, de nossa vida e
do nosso sangue.
As periferias vão tomar os condomínios
requintados. Não haverá vigias e nem exércitos para protegê-los porque
os soldados desertarão. E uma guerra não se ganha só com generais. Não
haverá fábricas funcionando sem os operários. Nem haverá supermercados
sem caixas, padeiros e açougueiros. Muito menos socorro sem os maqueiros
que também se juntarão à turba. Das favelas, das senzalas do século
XXI, surgirá o grito furioso:
- Lobo em Pele de Cordeiro, sabemos que a
saúde pública nunca lhe interessou porque sempre teve um plano privado;
que a educação só significava algo quando tomava nosso lugar nas
melhores Universidades públicas; que o transporte público você mesmo
sempre piorou com o uso egoísta dos seus carros. Você aplaudia o
genocídio diário nas periferias afora, afinal, aos habitantes das
favelas pouco direito é muito para você. Nós só éramos vistos enquanto
indivíduos quando estávamos perto de você nas portarias dos edifícios,
nas faxinas, nas cozinhas e nos serviços gerais. E mesmo assim, visíveis
só como homens e mulheres-máquina.
O Lobo em Pele de Cordeiro, perceberá
que a razão de existir das massas não era a de limpar a sujeira material
da ostentação, do desperdício e do excesso, e nem expiar a sujeira
moral de uma sociedade cindida e profundamente desigual – cujo legado da
escravidão – do reconhecimento de um outro como um ser intrinsecamente
inferior(izado) – é gritante. Mas já será tarde.
E antes do golpe final, ainda ouvirá da voz do gigante da calçada, em timbre que fará tremer até as rochas:
- Lobo em Pele de Cordeiro, você achava
que nossa revolta era só contra o Estado ou contra um governo? Nossa
revolta é contra tudo-o-que-está-aí! Você, Lobo em Pele de Cordeiro, é
parte desse problema. E vamos resolvê-lo!
Notas e Referências:
[1] QUINTANA P, Ronald. 393 fábulas de Esopo. Ed. Digital Kindle. Lima: Educación y Desarrollo Contemporáneo S.A, 2011, posição 1975.
[2] CHOMSKY, Noam. Deterring Democracy. New York: Verso, 1991.
[3] NEVES, Wilson das. O dia em que o morro descer e não for carnaval. O som sagrado de Wilson das Neves. Rio de janeiro: Gravadora CID, 1997. 1 CD.
Rosivaldo Toscano Jr. é
doutorando em direitos humanos pela UFPB, mestre em direito pela
UNISINOS, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos
Magistrados Brasileiros – AMB, membro da Associação Juízes para a
Democracia – AJD e juiz de direito em Natal, RN.
Imagem Ilustrativa do Post: Favela no Rio de Janeiro // Foto de: Kevin Jones // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/kj-an/2359557473
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