O grande codificador
Dos grandes vultos do direito romano, talvez o mais badalado seja
Justiniano (483-565), imperador romano (bizantino ou do “Oriente”) de
527 a 565, também conhecido como Justiniano I ou Justiniano, o Grande.
Merecidamente, acredito, pois, como lembra Antonio Padoa Schioppa em
“História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”
(edição da WMF Martins Fontes, de 2014, tradução de “Storia del diritto
in Europa”), “esse imperador, com o qual se encerra a parábola mais que
milenar do direito romano antigo, desempenhou um papel de extraordinário
relevo, sem igual na série dos grandes legisladores da história”.
Justiniano foi, como a história registra, o grande compilador – ou mesmo
codificador – do direito romano antigo, no que depois veio a ser
conhecido como o “Corpus Iuris Civilis”, uma monumental obra legislativa
e doutrinária que, curiosamente, como às vezes acontece na história,
passou despercebida aos seus contemporâneos.
Segundo os seus biógrafos, Justiniano nasceu em 483, na localidade
de Tauresium, na atual Macedônia, no seio de uma família humilde. Seu
nome original era Pedro Sabácio (em latim: Petrus Sabbatius). Foi
adotado pelo seu tio Justino (irmão da sua mãe), um guarda imperial que,
mais tarde, veio a se tornar imperador romano no Oriente (em 518, como
Justino I). Tomando o nome do seu tio, Pedro Sabácio torna-se Flávio
Pedro Sabácio Justiniano (Flavius Petrus Sabbatius Justinianus). Ainda
jovem, ele é levado a Constantinopla, onde seu tio servia militarmente.
Ali, Justiniano recebeu primorosa educação, em teologia, direito,
retórica e historia romana, pelo menos. Justiniano exerceu grande
influência no reinado do seu tio, que, muitas vezes ausente em campanha
militar, deixava o sobrinho como imperador “de facto”. Justiniano foi
nomeado César (e sucessor de Justino I) em 525. Em 527 foi apontado como
coimperador, juntamente com o tio Justino I. Com a morte deste no mesmo
ano, torna-se sozinho imperador romano no Oriente. Por essa época
(alguns dizem em 525, outros em 527), Justiniano casa-se com Teodora,
mulher inteligente e hábil politicamente, que exerce forte influência em
seu governo. Seu reinado foi uma era de grande atividade, de reformas e
de expansão do Império Romano do Oriente, restando Justiniano
conhecido, à sua época, pela energia e denodo que demonstrava, como o
“imperador que nunca dorme”. Seu reinado durou até 565, ano da sua morte
(em Constantinopla).
Embora Justiniano tenha lutado para restaurar a grandeza do antigo
Império Romano, estimulando a administração, a indústria, o comércio, as
ciências, as artes, a grande contribuição do imperador para a
posteridade está associada ao Direito. À época de Justiniano, apesar de
alguns esforços anteriores – como o “Código Teodosiano”, do ano 438,
obra do imperador Teodósio II (401-450), que reinou de 408 a 450 –, o
direito romano era um colossal emaranhado de provisões, composto de
“constituições”, éditos, decisões judiciais etc., que datavam de várias
eras (com diferenças de séculos entre elas). O “Corpus Iuris Civilis”,
gerado em cinco anos, de 529 a 534, veio exatamente para pôr um fim
nisso.
O “Corpus Iuris Civilis” era (ou é) composto de quatro partes: (i) o
“Código” (de 534), que reuniu em 12 livros, subdividos em títulos e
matérias, uma imensidão de “constituições” (provisões legais romanas),
que datavam desde o século I até o período de Justiniano; (ii) o
magnífico “Digesto” (de 533), com mais de 50 livros, também ordenados em
títulos, que condensou textos fundamentais da inteligência jurídica
romana. Obra coordenada pelo grande jurista e questor Triboniano
(500-547), com a supervisão do próprio Justiniano, o Digesto, como
afirma Antonio Padoa Schioppa, “salvou para a posteridade, mesmo que de
forma muito fragmentária, os escritos dos maiores juristas da Roma
antiga, de Sálvio Juliano a Labeão, de Paulo a Ulpiano, de Pompônio a
Calístrato, de Modestino a Papiniano e vários outros. Aquilo que
conhecemos do direito clássico e da forma de raciocínio e argumentação
dos juristas romanos deve-se essencialmente a essa obra, cuja
importância para a história do direito é incomensurável. Sem ela, teria
se perdido para sempre o fruto mais maduro da civilização romana”; (iii)
as “Novelas”, uma coletânea suplementar de 168 “constituições”
produzidas por Justiniano nos anos do seu governo posteriores à edição
do “Código”; (iv) e as “Instituições”, obra que, inspirada nas
“Instituições” de Gaio (130-180), destila os princípios emanados dos
outros três documentos.
O método do “Corpus Iuris Civilis” foi inovador, pois, além de
condensar num só “documento” um até então disperso direito romano, ele
nos mostra como era o raciocínio e a argumentação jurídica romana
(especialmente no Digesto) e contém uma exposição principiológica do
direito que o seu todo veicula (nas Instituições).
À sua época, Justiniano pretendeu que o “Corpus Iuris Civilis” se
tornasse a única fonte do Direito, devendo ser aplicada na sua
integralidade pelos juízes do seu Império, que estariam proibidos de
fazer uso de outras fontes e até mesmo de interpretar/comentar o
“Corpus” (proibição, essa última, que restou, como registra Antonio
Padoa Schioppa, “entre as menos observadas da história”). Outrossim, à
época de Justiniano, o “Corpus Iuris Civilis” teve mais sucesso no
Oriente que no Ocidente. Naquele, constituiu-se como a base do direito
bizantino por quase mil anos, até a queda de Constantinopla nas mãos do
turcos em 1453. No Ocidente, dada a conhecida invasão dos bárbaros (ou
povos germânicos, tais como os francos, os visigodos, lombardos etc.),
sua influência (e do direito romano como um todo) foi menor, tendo,
entretanto, voltado à cena, com todo esplendor, no século XII, como
fonte de referência do chamado “direito comum”, alastrando-se essa
influência até os nossos dias.
De fato, o “Corpus Iuris Civilis”, essa empresa monumental, está na
base do “civil law” ou direito romano-germânico, que a nós, da Europa
Continental e dos demais países que seguiram essa tradição, pela
história, foi legado. Nesse sentido, como lembra Robert Hockett, em
“Little Book of Big Ideas – Law” (A & C Black Publishers Ltd.), o
império de Justiniano nunca teve fim. Acha-se de pé, sempre alerta, como
o seu artífice (o imperador “que nunca dormia”), no direito que ainda
hoje aplicamos.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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