terça-feira, 21 de julho de 2015

 
   
   
 
 
   
Marcelo Alves

 
 

O grande codificador

Dos grandes vultos do direito romano, talvez o mais badalado seja Justiniano (483-565), imperador romano (bizantino ou do “Oriente”) de 527 a 565, também conhecido como Justiniano I ou Justiniano, o Grande. Merecidamente, acredito, pois, como lembra Antonio Padoa Schioppa em “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea” (edição da WMF Martins Fontes, de 2014, tradução de “Storia del diritto in Europa”), “esse imperador, com o qual se encerra a parábola mais que milenar do direito romano antigo, desempenhou um papel de extraordinário relevo, sem igual na série dos grandes legisladores da história”. Justiniano foi, como a história registra, o grande compilador – ou mesmo codificador – do direito romano antigo, no que depois veio a ser conhecido como o “Corpus Iuris Civilis”, uma monumental obra legislativa e doutrinária que, curiosamente, como às vezes acontece na história, passou despercebida aos seus contemporâneos. 

Segundo os seus biógrafos, Justiniano nasceu em 483, na localidade de Tauresium, na atual Macedônia, no seio de uma família humilde. Seu nome original era Pedro Sabácio (em latim: Petrus Sabbatius). Foi adotado pelo seu tio Justino (irmão da sua mãe), um guarda imperial que, mais tarde, veio a se tornar imperador romano no Oriente (em 518, como Justino I). Tomando o nome do seu tio, Pedro Sabácio torna-se Flávio Pedro Sabácio Justiniano (Flavius Petrus Sabbatius Justinianus). Ainda jovem, ele é levado a Constantinopla, onde seu tio servia militarmente. Ali, Justiniano recebeu primorosa educação, em teologia, direito, retórica e historia romana, pelo menos. Justiniano exerceu grande influência no reinado do seu tio, que, muitas vezes ausente em campanha militar, deixava o sobrinho como imperador “de facto”. Justiniano foi nomeado César (e sucessor de Justino I) em 525. Em 527 foi apontado como coimperador, juntamente com o tio Justino I. Com a morte deste no mesmo ano, torna-se sozinho imperador romano no Oriente. Por essa época (alguns dizem em 525, outros em 527), Justiniano casa-se com Teodora, mulher inteligente e hábil politicamente, que exerce forte influência em seu governo. Seu reinado foi uma era de grande atividade, de reformas e de expansão do Império Romano do Oriente, restando Justiniano conhecido, à sua época, pela energia e denodo que demonstrava, como o “imperador que nunca dorme”. Seu reinado durou até 565, ano da sua morte (em Constantinopla). 

Embora Justiniano tenha lutado para restaurar a grandeza do antigo Império Romano, estimulando a administração, a indústria, o comércio, as ciências, as artes, a grande contribuição do imperador para a posteridade está associada ao Direito. À época de Justiniano, apesar de alguns esforços anteriores – como o “Código Teodosiano”, do ano 438, obra do imperador Teodósio II (401-450), que reinou de 408 a 450 –, o direito romano era um colossal emaranhado de provisões, composto de “constituições”, éditos, decisões judiciais etc., que datavam de várias eras (com diferenças de séculos entre elas). O “Corpus Iuris Civilis”, gerado em cinco anos, de 529 a 534, veio exatamente para pôr um fim nisso. 

O “Corpus Iuris Civilis” era (ou é) composto de quatro partes: (i) o “Código” (de 534), que reuniu em 12 livros, subdividos em títulos e matérias, uma imensidão de “constituições” (provisões legais romanas), que datavam desde o século I até o período de Justiniano; (ii) o magnífico “Digesto” (de 533), com mais de 50 livros, também ordenados em títulos, que condensou textos fundamentais da inteligência jurídica romana. Obra coordenada pelo grande jurista e questor Triboniano (500-547), com a supervisão do próprio Justiniano, o Digesto, como afirma Antonio Padoa Schioppa, “salvou para a posteridade, mesmo que de forma muito fragmentária, os escritos dos maiores juristas da Roma antiga, de Sálvio Juliano a Labeão, de Paulo a Ulpiano, de Pompônio a Calístrato, de Modestino a Papiniano e vários outros. Aquilo que conhecemos do direito clássico e da forma de raciocínio e argumentação dos juristas romanos deve-se essencialmente a essa obra, cuja importância para a história do direito é incomensurável. Sem ela, teria se perdido para sempre o fruto mais maduro da civilização romana”; (iii) as “Novelas”, uma coletânea suplementar de 168 “constituições” produzidas por Justiniano nos anos do seu governo posteriores à edição do “Código”; (iv) e as “Instituições”, obra que, inspirada nas “Instituições” de Gaio (130-180), destila os princípios emanados dos outros três documentos. 

O método do “Corpus Iuris Civilis” foi inovador, pois, além de condensar num só “documento” um até então disperso direito romano, ele nos mostra como era o raciocínio e a argumentação jurídica romana (especialmente no Digesto) e contém uma exposição principiológica do direito que o seu todo veicula (nas Instituições). 

À sua época, Justiniano pretendeu que o “Corpus Iuris Civilis” se tornasse a única fonte do Direito, devendo ser aplicada na sua integralidade pelos juízes do seu Império, que estariam proibidos de fazer uso de outras fontes e até mesmo de interpretar/comentar o “Corpus” (proibição, essa última, que restou, como registra Antonio Padoa Schioppa, “entre as menos observadas da história”). Outrossim, à época de Justiniano, o “Corpus Iuris Civilis” teve mais sucesso no Oriente que no Ocidente. Naquele, constituiu-se como a base do direito bizantino por quase mil anos, até a queda de Constantinopla nas mãos do turcos em 1453. No Ocidente, dada a conhecida invasão dos bárbaros (ou povos germânicos, tais como os francos, os visigodos, lombardos etc.), sua influência (e do direito romano como um todo) foi menor, tendo, entretanto, voltado à cena, com todo esplendor, no século XII, como fonte de referência do chamado “direito comum”, alastrando-se essa influência até os nossos dias. 

De fato, o “Corpus Iuris Civilis”, essa empresa monumental, está na base do “civil law” ou direito romano-germânico, que a nós, da Europa Continental e dos demais países que seguiram essa tradição, pela história, foi legado. Nesse sentido, como lembra Robert Hockett, em “Little Book of Big Ideas – Law” (A & C Black Publishers Ltd.), o império de Justiniano nunca teve fim. Acha-se de pé, sempre alerta, como o seu artífice (o imperador “que nunca dormia”), no direito que ainda hoje aplicamos. 

Marcelo Alves Dias de Souza 
Procurador Regional da República 
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL 
Mestre em Direito pela PUC/SP

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