sexta-feira, 3 de julho de 2015


O KARDECISTA E O VIGÁRIO

Valério Mesquita*

01) Manoel Dantas de Medeiros é hoje oitentão, ex-vereador e funcionário federal aposentado. Chefiou por muito tempo em Macaíba o depósito do SAPS, órgão de abastecimento do Ministério da Agricultura. Vereador e orador talvez, essa última atividade tenha sido o traço dominante de sua vida, onde uma característica peculiar o revelou: médium espírita da doutrina kardecista. Essa carga espiritualista imprimia nos discursos de Manoel na câmara municipal verdadeiros transes mediúnicos que fizeram, certa vez, o seu colega vereador mestre Pedro (Pedro Luiz de Araújo) exclamar em plena sessão: “Pára, “Manuel”, eu já tô todo “arrupiado!!””. Os seus adversários políticos e da doutrina espírita alegavam que a prolixidade e a veemência das manifestações eram puro impressionismo pelo fato de o vereador ter assento cativo, como médium, nas reuniões semanais da casa do comerciante Emídio Pereira, presidente dos trabalhos e emérito cultor do kardecismo. Contam que em determinada reunião espírita, o saudoso Emídio mandou outro obreiro vidente “descrever o ambiente”, isto é, relatar as entidades do plano espiritual presentes. Observado o “quorum regimental”, alguns manifestaram que queriam passar uma mensagem do além, mas se recusavam transmiti-la através do irmão Manoel. Seu Emídio doutrinou os “visitantes” invisíveis e realçou as qualidades fidedignas da palavra do médium, seu grande amigo. Os espíritos baixados teimaram em não atuar através de Manoel. Passados alguns minutos, o presidente da sessão perdeu a paciência: “Pois se não for através do irmão Manoel Dantas de Medeiros, não fala ninguém essa noite”. E encerrou a reunião com a prece de Cáritas.
02)  Antônio de Melo Chacon, padre Chacon, foi vigário de Macaíba e adjacências. Do final dos anos quarenta até à década de cinquenta, pontificou o seu reinado, conciliando a fé e o pecado, a Igreja Católica e a grande ventura de humanamente viver. De família tradicional, padre Chacon conviveu no meio dos políticos sem se contaminar, pois detinha o carisma hipnótico da humildade e da esperteza de disfarçar equívocos. Foi lúdico, quebrou mandamentos, conviveu com Deus e o diabo; sofreu tentações e jamais as dúvidas e as dívidas deixaram de assaltá-lo. Foi sacerdote à sua maneira. Enfim, tomava vinho e cerveja. Gostava de festas. Orador sacro, as suas missas impressionavam pela dialética da persuasão, da conversão pela palavra fácil e dúctil que ocupavam todas as paredes da matriz. O padre Chacon faleceu velhinho com mais de oitenta anos. Os seus últimos anos veio vivê-los em Macaíba. Afastado da igreja por haver se casado, alugou uma casa em frente à igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição. Vi-o várias vezes à janela, já quase cego, contemplando a templo como se estivesse diante de uma visão celestial da Virgem Maria perdoando, a mando de Cristo, todos os seus pecados e contradições. Esse clichê de cinquenta anos passados ficou definitivo na minha memória. Não consigo apagá-lo. Chacon morreu pacificado porque teve em sua defesa, na hora derradeira, a clara estrela vespertina, lânguida anunciadora da noite dos homens e dos santos.

(*) Escritor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário