O KARDECISTA E O
VIGÁRIO
Valério Mesquita*
01) Manoel Dantas de Medeiros é hoje oitentão,
ex-vereador e funcionário federal aposentado. Chefiou por muito tempo em
Macaíba o depósito do SAPS, órgão de abastecimento do Ministério da
Agricultura. Vereador e orador talvez, essa última atividade tenha sido o traço
dominante de sua vida, onde uma característica peculiar o revelou: médium
espírita da doutrina kardecista. Essa carga espiritualista imprimia nos
discursos de Manoel na câmara municipal verdadeiros transes mediúnicos que
fizeram, certa vez, o seu colega vereador mestre Pedro (Pedro Luiz de Araújo)
exclamar em plena sessão: “Pára, “Manuel”, eu já tô todo “arrupiado!!””. Os seus adversários políticos e da
doutrina espírita alegavam que a prolixidade e a veemência das manifestações
eram puro impressionismo pelo fato de o vereador ter assento cativo, como
médium, nas reuniões semanais da casa do comerciante Emídio Pereira, presidente
dos trabalhos e emérito cultor do kardecismo. Contam que em determinada reunião
espírita, o saudoso Emídio mandou outro obreiro vidente “descrever o ambiente”,
isto é, relatar as entidades do plano espiritual presentes. Observado o “quorum
regimental”, alguns manifestaram que queriam passar uma mensagem do além, mas
se recusavam transmiti-la através do irmão Manoel. Seu Emídio doutrinou os
“visitantes” invisíveis e realçou as qualidades fidedignas da palavra do
médium, seu grande amigo. Os espíritos baixados teimaram em não atuar através de Manoel. Passados alguns minutos, o presidente da
sessão perdeu a paciência: “Pois se não for através do irmão Manoel Dantas de
Medeiros, não fala ninguém essa noite”. E encerrou a reunião com a prece de
Cáritas.
02) Antônio de Melo
Chacon, padre Chacon, foi vigário de Macaíba e adjacências. Do final dos anos
quarenta até à década de cinquenta, pontificou o seu reinado, conciliando a fé
e o pecado, a Igreja Católica e a grande ventura de humanamente viver. De
família tradicional, padre Chacon conviveu no meio dos políticos sem se
contaminar, pois detinha o carisma hipnótico da humildade e da esperteza de
disfarçar equívocos. Foi lúdico, quebrou mandamentos, conviveu com Deus e o diabo;
sofreu tentações e jamais as dúvidas e as dívidas deixaram de assaltá-lo. Foi
sacerdote à sua maneira. Enfim, tomava vinho e cerveja. Gostava de festas.
Orador sacro, as suas missas impressionavam pela dialética da persuasão, da
conversão pela palavra fácil e dúctil que ocupavam todas as paredes da matriz.
O padre Chacon faleceu velhinho com mais de oitenta anos. Os seus últimos anos
veio vivê-los em Macaíba. Afastado da igreja por haver se casado, alugou uma
casa em frente à igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição. Vi-o várias vezes
à janela, já quase cego, contemplando a templo como se estivesse diante de uma
visão celestial da Virgem Maria perdoando, a mando de Cristo, todos os seus
pecados e contradições. Esse clichê de cinquenta anos passados ficou definitivo
na minha memória. Não consigo apagá-lo. Chacon morreu pacificado porque teve em
sua defesa, na hora derradeira, a clara estrela vespertina, lânguida
anunciadora da noite dos homens e dos santos.
(*) Escritor.
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