O legislador de Deus
Líder do povo de Israel em seu Êxodo do Egito e na sua errância pelo “deserto”, quase sempre retratado como um velhinho de barba branca e cabelo grande, Moisés foi, pelo menos para a nossa tradição judaico-cristã, talvez o primeiro e com certeza o mais famoso dos antigos legisladores. Sua história está contada em quatro livros da Bíblia, do Êxodo ao Deuteronômio. Sem aqui discutir a veracidade do que ali está registrado, essa importantíssima parte do Antigo Testamento constitui-se numa verdadeira biografia de Moisés, do seu nascimento à sua morte, relatando muitos dos acontecimentos da vida desse “legislador de Deus”.
Filho do casal levita (aqui me refiro à tribo israelense) Amram e Jocabed, Moisés nasceu no Egito, muito provavelmente no tempo do Faraó Ramsés II, que à época havia, segundo a tradição bíblica, determinado a morte das crianças hebreias do sexo masculino. Segundo conta a Bíblia, o pequeno Moisés foi por algum tempo escondido pela família para evitar a morte nas mãos dos egípcios e, depois, posto em uma cesta entre os juncos do Rio Nilo. Ele foi descoberto por uma filha do Faraó que se banhava no Nilo. Foi por ela poupado e criado como filho adotivo no palácio real. Moisés foi amamentado pela própria mãe que, com a identidade não revelada, foi empregada no palácio para cuidar da criança. Já adulto, Moisés matou um egípcio que viu batendo em um hebreu e teve de fugir do Egito para salvar sua própria vida. Refugiado, casou-se com Séfora. Teve dois filhos, Gérson e Eliezer. Certo dia, quando Moisés pastoreava o rebanho do sogro, Deus lhe ordenou que voltasse ao Egito e, com a ajuda de Aarão, retirasse os hebreus do “cativeiro” egípcio. E vem assim a famosa história/estória, que nos conta, resumidamente, o “Dicionário da Bíblia”, organizado por Brune M. Metzer e Michael D. Coogan e publicado no Brasil por Jorge Zahar Editor: “Moisés retornou ao Egito e, junto com Aarão, produziu sinais e nove pragas para convencer o faraó a permitir aos hebreus sair do Egito (...). Os sinais e pragas não convenceram o faraó, que repetidamente deu e retirou sua permissão para a partida. Com a décima praga, a mortandade dos primogênitos, o faraó e seu povo instaram os hebreus a partirem. Moisés e o povo partiram somente para serem perseguidos pelo faraó, cujo exército afogou-se nas águas do mar Vermelho, depois que elas se haviam aberto para deixar os israelistas as atravessarem”.
Foi no “deserto” (onde passou com seu povo quarenta anos em busca da “terra prometida”), mais precisamente no Monte Sinai, que Moisés recebeu de Deus os famosos “Dez Mandamentos” (que, para o Judaísmo, é uma pequena parte das suas 613 leis), o que fez dele, nesse caso como mediador da lei de Deus aos homens, o mais famoso dos antigos legisladores da civilização ocidental.
Distribuídos no Livro do Êxodo, no Capítulo 20, em 17 versículos (como também no Deuteronômio, Capítulo 5, versículos 6-21), os “Dez Mandamentos”, na tradição católica, são assim sistematizados: (i) Amar a Deus sobre todas as coisas; (ii) Não usar Seu santo nome em vão; (iii) Guardar domingos e festas de guarda; (iv) Honrar pai e mãe; (v) Não matar; (vi) Não pecar contra a castidade; (vii) Não roubar; (viii) Não levantar falso testemunho; (ix) Não desejar a mulher do próximo; e (x) Não cobiçar as coisas alheias. Posto dessa ou de outra forma, quase todas as prescrições dos “Dez Mandamentos”, tirando talvez “não pecar contra a castidade” e “não desejar a mulher do próximo” (graças a Deus ou ao diabo, não sei, mas aos dois desde já agradeço), estão consagradas em leis ou fazem parte dos códigos morais da civilização ocidental de hoje.
Para o direito, entretanto, a importância dos “Dez Mandamentos” de Moisés (ou de Deus, como queiram) - que aprendemos em nossa infância, para esquecermos, boa parte deles, logo depois - vai muito além do seu conteúdo.
Antes de mais nada, e isso já é de imensa relevância, os “Mandamentos” foram uma das primeiras leis escritas, no caso em tábuas de pedra, que a história universal registra.
Em segundo lugar, por detrás da história dos “Dez Mandamentos”, na qual Moisés serve de intermediário ou de mediador de Deus, que dispõe seus comandos a partir de um plano superior, está a essência daquilo que hoje chamamos de direito natural, um direito que, fundado na razão ou no mais íntimo da natureza humana, na qualidade de ser individual ou coletivo, ou (como no caso) na nossa relação com Deus, preexiste ao direito produzido pelos homens ou pelo Estado e deve ser sempre respeitado.
Em terceiro lugar, ao mesmo tempo, em um viés positivista (sobretudo “legislatorialista”, se é que essa palavra existe), da história de Moisés e dos “seus” mandamentos também se extrai a lição de que o direito deve ser formalmente registrado e devidamente publicizado (nem que seja em duas tábuas de pedra, como se deu à época), algo que hoje é exigido pela famosa “rule of law” e em qualquer estado democrático de direito.
Bom, posto tudo isso, o que vocês acham: Moisés foi ou não um legislador abençoado?
Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Mestre em Direito pela PUC/SP
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