“O
general Golbery do Couto e Silva dizia que dentro de cada vitória há
uma derrota. E que dentro de cada derrota há outra derrota. O dito do
mago da ditadura não era para ser levado a sério, apesar de ter o seu
sal de verdade. Tomar de sete a um é chato. Mas não é uma tragédia.
Outras derrotas virão, quem sabe até maiores. É do jogo.
O
futebol é o mais internacional dos esportes, centenas de milhões de
pessoas no mundo todo torcem, sofrem e discutem interminavelmente
partidas e campeonatos. Ele pertence ao domínio do entretenimento,
existe para divertir, no seu âmago está o prazer. Na Copa do Mundo, boa
parte da espécie humana acompanha os jogos, dando origem a uma narrativa
global que envolve bilhões de espectadores. Há uma tensão planetária
que não redunda em violência. É uma beleza.
Tudo
isso em nada altera a realidade material da vida e o rumo da história. O
juiz apita o final do jogo, as luzes se apagam e em poucos dias tudo
volta ao que era dantes na arena de Abrantes. Salvo para os diretamente
envolvidos, os jogadores. Pagos a peso de ouro, eles são profissionais
no topo da carreira, astros adulados em centenas de países. Na Copa,
pelo que se percebeu, a maioria deles se comportou a contento.
Trabalharam com diligência e seriedade, deram o melhor de si. Com
emoção, também — vibrando na vitória e sofrendo na derrota.
Talvez
porque se preste mais atenção nela, a seleção destoou um pouco. Havia
uma estranha infantilização do time. Adotou-se o termo “família” para
designá-lo, e nela os jogadores faziam o papel de filhos. Adultos
experientes, versados em contratos milionários, com casa, família e
trabalho no exterior, entravam em campo numa ordem unida de quadra de
escola, com a mão no ombro do amiguinho da frente. O técnico era chamado
de “professor” e se comportava como tal. Cantavam o hino nacional com o
civismo de meninos. Usavam bonés virados para o lado como se tivessem
14 anos.
O
misticismo também os apartava da maioria dos jogadores de outros
países. Fazia-se o sinal da cruz para entrar e sair do campo.
Beijavam-se medalhinhas no pescoço. Prostrado de joelhos e com os olhos
fechados, quem fazia gol apontava para o céu e agradecia a graça
recebida. Promoviam-se rezas coletivas. Repetiu-se várias vezes que era
preciso ter fé. Thiago Silva juntou crença e criancice e referiu-se a
“papai do céu” numa entrevista. Quando Neymar teve de se afastar do
torneio, passou-se a falar com insistência em milagre.
Nada
disso é novo, exceto os excessos. No Brasil, o fervor futebolístico tem
ânimo religioso. Já na Copa de 1970, Jairzinho marcou um gol na final
contra a Itália, se ajoelhou e fez o sinal da cruz. Salvo engano, foi o
único lance religioso do time nacional. Os tempos eram outros e a reação
ao gesto foi diferente da adesão de agora. Os tricampeões responderam
depois da partida a perguntas de personalidades variadas. Na enquete,
publicada no Brasil pela revista “Manchete”, Pasolini perguntou a
Jairzinho se não achava que o seu gesto poderia ser “apropriado pelos
reacionários”.
A
definição de um processo é determinada pelo seu desenlace. Se a seleção
fosse hexacampeã, sua infantilização seria considerada um lance de
gênio, a estratégia definitiva da autoajuda. Ficaria provado que a fé
move montanhas e marca gols. Talvez até papai do céu desse a volta
olímpica no Maracanã.
Mas
não houve milagre. A Alemanha jogou melhor e a seleção desmoronou. Os
jogadores se comportaram em campo como vinham fazendo — como crianças,
parte delas mimadas. Ainda bem que cirurgiões ou pilotos de avião não
agem como eles nas adversidades.
A
seleção não representa o Brasil. Se o Congresso e os políticos, que são
eleitos, não o representam, por que uma equipe de jogadores poderia
fazê-lo? O raciocínio é absoluto e vale quando invertido: também nas
grandes vitórias o time brasileiro não encarnava, nem virá a encarnar, a
nação. Essa história de que a seleção é a pátria de chuteiras é balela,
uma metáfora mal-ajambrada.
A
derrota de quarta-feira — a hecatombe, a catástrofe, o vexame, a
vergonha, o massacre, qualquer que seja a designação estentórea que se
lhe dê — é uma humilhação apenas para os que nela estavam implicados.
Sendo o futebol o que é, não parece razoável esperar que ela produza
grandes modificações na organização do esporte. Alguns nomes serão
trocados e, como eles mesmos dizem, bola pra frente.
Para
os outros, para nós, restarão as palavras. O espantoso jogo contra a
Alemanha será analisado, interpretado, discutido e dissecado como um
cadáver. Ao contrário do piripaque de Ronaldo na final da Copa de 1998,
não haverá o que revelar do episódio. A queda se deu à vista de todos.
Mas é com palavras que se fazem os mitos.”
Anônimo, porém lúcido.
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Enviado pelo Amigo Roberto (Bob) Furtado
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