terça-feira, 8 de julho de 2014



Marcelo Alves
 
 O tribunal alemão

Semana passada, tratei aqui do Tribunal Constitucional austríaco. Hoje, dando sequência à temática, é a vez de falarmos do famosíssimo congênere alemão, o “Bundesverfassungsgericht” (traduzindo: sopa de consoantes que quer significar, segundo eu sei, “Tribunal Constitucional Federal da Alemanha”).

Antes de mais nada, vale registrar que o modelo de controle constitucional concentrado, originalmente concebido por Kelsen (1881-1973) e inaugurado na Áustria, foi adotado, com alguns poucas variantes, na terra de Carl Schmitt (1888-1985). As similitudes são evidentes, sobretudo na adoção da ação direta perante um órgão específico para fiscalização abstrata de constitucionalidade, o tal Tribunal Constitucional Federal, assim como a eficácia erga omnes e o efeito vinculante das decisões de inconstitucionalidade proferidas por essa corte. Além disso, desde o seu nascedouro, possui o modelo alemão algo que, no sistema austríaco, só veio surgir depois: o controle concreto de constitucionalidade das normas (em linhas gerais, quando uma corte considerar inconstitucional, perante a Constituição Federal, uma lei de cuja validade dependa sua decisão, deverá suspender o feito e submeter a questão ao Tribunal Constitucional Federal).

Ademais, o badalado Tribunal Constitucional Federal é uma corte autônoma e independente, à frente de todos os demais órgãos constitucionais, como lembra Rodolfo Ernesto Witthaus (em “Poder judicial alemán”). Com sede em Karlsruhe, no estado federado de Baden-Württemberg, é composto por dezesseis juízes. Oito são eleitos pelo Parlamento; oito, pelo Conselho Federal. A idade mínima para o cargo é de 40 anos; a máxima, de 68. Seis membros devem ser magistrados federais; os demais, juristas de altíssima qualificação. O mandato dos membros é de doze anos, sem possibilidade de renovação. O Tribunal é divido em dois Senados, cada qual composto de oito membros. Cada Senado, por sua vez, é divido em três Câmaras (algo como nossas seções e turmas). As competências de cada órgão e o quorum para decisão são devidamente estabelecidos. O Presidente e o Vice-Presidente do Tribunal são os presidentes dos referidos Senados, havendo a respectiva alternância a cada mandato.

É verdade que a Lei Fundamental alemã também reconhece aos Länder (algo semelhante aos nossos Estados) a possibilidade de instituir a sua própria jurisdição constitucional. E, de fato, existem “tribunais constitucionais estaduais”, à semelhança dos nossos tribunais de justiça, para fins de controle de constitucionalidade perante às constituições estaduais. Entretanto, para a Alemanha e para qualquer estudo de direito comparado, sobreleva, como enfatiza Helmut Simon (no texto “La Jurisdicción Constitucional”, que faz parte do “Manual de Derecho Constitucional” organizado por Ernest Benda), que já foi juiz do Tribunal Constitucional Federal, “o peso do Bundesverfassungsgericht à medida que os órgãos da Federação e dos Estados, assim como todos os tribunais e autoridades, estão vinculados por suas decisões, e que as mesmas têm força de lei enquanto afetem a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de normas”.

Mais precisamente, nesse controle, ele atua além dos moldes clássicos de um tribunal judicial comum, exercendo um poder político, produzindo decisões com efeitos ex tunc, vinculantes e com força de lei. Por exemplo, a declaração da inconstitucionalidade de uma lei, que a declara nula, é publicada no Diário Oficial Federal (Bundesgesetzblatt/BGBLL) e tem efeito vinculante e força de lei, inclusive para os demais poderes da Federação e dos Estados, proibindo, por exemplo, o legislador de reiterar a edição da norma declarada inconstitucional. E não só as decisões do Tribunal Constitucional que declaram a inconstitucionalidade de uma lei possuem efeito vinculante. Também possuem o mesmo efeito as decisões que declaram a constitucionalidade e as chamadas “sentenças interpretativas”. No último caso, explica Albrecht Weber (em “Las tenciones entre el Tribunal Constitucional y el Legislador en la Europa actual”), Catedrático de Direito Público na Universidade de Osnabrück, é evidente que “a técnica da interpretação conforme (a Constituição) também enseja uma nulidade parcial das demais interpretações do preceito impugnado; nesse sentido, os tribunais e os demais órgãos do Estado estão vinculados às interpretações conforme a espécie normativa”. Em última análise, o próprio Tribunal Constitucional Federal alemão vem deixando claro que o efeito vinculante recai não só sobre o dispositivo, mas também sobre os fundamentos jurídicos e a interpretação constante da decisão, transcendendo o caso singular (devendo, portanto, ser observados por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros), porquanto é o Tribunal o verdadeiro intérprete e guardião da Lei Fundamental.

No mais, no Brasil dos últimos tempos, como sabemos, tem sido enorme a influência do constitucionalismo alemão - e do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, por consequência - na construção/desenvolvimento do nosso modelo de controle jurisdicional de constitucionalidade. Como exemplo, basta lembrar a questão da não vinculação do nosso Supremo Tribunal Federal às suas próprias decisões. De fato, embora a Lei orgânica do Tribunal Constitucional Federal alemão não seja explícita a respeito, entende a própria Corte não haver essa autovinculação, o que serve para arejar, como moderação (pelo amor de Deus), a jurisprudência constitucional. No Brasil, a orientação adotada desde a Emenda Constitucional 03/93, seguindo segundo se diz o exemplo alemão, exclui também o STF do âmbito de aplicação do efeito vinculante de suas próprias decisões, já que o texto fala em efeito vinculante em relação “aos demais órgãos do Poder Judiciário”.

E que continue assim: nas coisas boas, o Brasil seguidor/parceiro da Alemanha. Menos no futebol! Pois, na Copa do Mundo, se toparmos com germânicos, eles que chorem...

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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