O tribunal alemão
Semana passada, tratei aqui do Tribunal Constitucional austríaco. Hoje,
dando sequência à temática, é a vez de falarmos do famosíssimo
congênere alemão, o “Bundesverfassungsgericht” (traduzindo: sopa de
consoantes que quer significar, segundo eu sei, “Tribunal Constitucional
Federal da Alemanha”).
Antes de mais nada, vale registrar que o
modelo de controle constitucional concentrado, originalmente concebido
por Kelsen (1881-1973) e inaugurado na Áustria, foi adotado, com alguns
poucas variantes, na terra de Carl Schmitt (1888-1985). As similitudes
são evidentes, sobretudo na adoção da ação direta perante um órgão
específico para fiscalização abstrata de constitucionalidade, o tal
Tribunal Constitucional Federal, assim como a eficácia erga omnes e o
efeito vinculante das decisões de inconstitucionalidade proferidas por
essa corte. Além disso, desde o seu nascedouro, possui o modelo alemão
algo que, no sistema austríaco, só veio surgir depois: o controle
concreto de constitucionalidade das normas (em linhas gerais, quando uma
corte considerar inconstitucional, perante a Constituição Federal, uma
lei de cuja validade dependa sua decisão, deverá suspender o feito e
submeter a questão ao Tribunal Constitucional Federal).
Ademais, o badalado Tribunal Constitucional Federal é uma corte autônoma
e independente, à frente de todos os demais órgãos constitucionais,
como lembra Rodolfo Ernesto Witthaus (em “Poder judicial alemán”). Com
sede em Karlsruhe, no estado federado de Baden-Württemberg, é composto
por dezesseis juízes. Oito são eleitos pelo Parlamento; oito, pelo
Conselho Federal. A idade mínima para o cargo é de 40 anos; a máxima, de
68. Seis membros devem ser magistrados federais; os demais, juristas de
altíssima qualificação. O mandato dos membros é de doze anos, sem
possibilidade de renovação. O Tribunal é divido em dois Senados, cada
qual composto de oito membros. Cada Senado, por sua vez, é divido em
três Câmaras (algo como nossas seções e turmas). As competências de cada
órgão e o quorum para decisão são devidamente estabelecidos. O
Presidente e o Vice-Presidente do Tribunal são os presidentes dos
referidos Senados, havendo a respectiva alternância a cada mandato.
É verdade que a Lei Fundamental alemã também reconhece aos Länder (algo
semelhante aos nossos Estados) a possibilidade de instituir a sua
própria jurisdição constitucional. E, de fato, existem “tribunais
constitucionais estaduais”, à semelhança dos nossos tribunais de
justiça, para fins de controle de constitucionalidade perante às
constituições estaduais. Entretanto, para a Alemanha e para qualquer
estudo de direito comparado, sobreleva, como enfatiza Helmut Simon (no
texto “La Jurisdicción Constitucional”, que faz parte do “Manual de
Derecho Constitucional” organizado por Ernest Benda), que já foi juiz do
Tribunal Constitucional Federal, “o peso do Bundesverfassungsgericht à
medida que os órgãos da Federação e dos Estados, assim como todos os
tribunais e autoridades, estão vinculados por suas decisões, e que as
mesmas têm força de lei enquanto afetem a constitucionalidade ou
inconstitucionalidade de normas”.
Mais precisamente, nesse
controle, ele atua além dos moldes clássicos de um tribunal judicial
comum, exercendo um poder político, produzindo decisões com efeitos ex
tunc, vinculantes e com força de lei. Por exemplo, a declaração da
inconstitucionalidade de uma lei, que a declara nula, é publicada no
Diário Oficial Federal (Bundesgesetzblatt/BGBLL) e tem efeito vinculante
e força de lei, inclusive para os demais poderes da Federação e dos
Estados, proibindo, por exemplo, o legislador de reiterar a edição da
norma declarada inconstitucional. E não só as decisões do Tribunal
Constitucional que declaram a inconstitucionalidade de uma lei possuem
efeito vinculante. Também possuem o mesmo efeito as decisões que
declaram a constitucionalidade e as chamadas “sentenças
interpretativas”. No último caso, explica Albrecht Weber (em “Las
tenciones entre el Tribunal Constitucional y el Legislador en la Europa
actual”), Catedrático de Direito Público na Universidade de Osnabrück, é
evidente que “a técnica da interpretação conforme (a Constituição)
também enseja uma nulidade parcial das demais interpretações do preceito
impugnado; nesse sentido, os tribunais e os demais órgãos do Estado
estão vinculados às interpretações conforme a espécie normativa”. Em
última análise, o próprio Tribunal Constitucional Federal alemão vem
deixando claro que o efeito vinculante recai não só sobre o dispositivo,
mas também sobre os fundamentos jurídicos e a interpretação constante
da decisão, transcendendo o caso singular (devendo, portanto, ser
observados por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros),
porquanto é o Tribunal o verdadeiro intérprete e guardião da Lei
Fundamental.
No mais, no Brasil dos últimos tempos, como
sabemos, tem sido enorme a influência do constitucionalismo alemão - e
do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, por consequência - na
construção/desenvolvimento do nosso modelo de controle jurisdicional de
constitucionalidade. Como exemplo, basta lembrar a questão da não
vinculação do nosso Supremo Tribunal Federal às suas próprias decisões.
De fato, embora a Lei orgânica do Tribunal Constitucional Federal alemão
não seja explícita a respeito, entende a própria Corte não haver essa
autovinculação, o que serve para arejar, como moderação (pelo amor de
Deus), a jurisprudência constitucional. No Brasil, a orientação adotada
desde a Emenda Constitucional 03/93, seguindo segundo se diz o exemplo
alemão, exclui também o STF do âmbito de aplicação do efeito vinculante
de suas próprias decisões, já que o texto fala em efeito vinculante em
relação “aos demais órgãos do Poder Judiciário”.
E que continue
assim: nas coisas boas, o Brasil seguidor/parceiro da Alemanha. Menos
no futebol! Pois, na Copa do Mundo, se toparmos com germânicos, eles que
chorem...
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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