sábado, 8 de fevereiro de 2014


UMA TARDE PROUSTIANA COM NALVA NÓBREGA
José Antônio Pereira Rodrigues – Procurador do Estado – Professor e Mestre em Direito

O Professor Nanael Simão Batista, jucurutuense, está em fase de montagem de sua Dissertação de Mestrado em Educação, na UFRN. Em seu trabalho, o autor aborda a trajetória pedagógica da primeira professora diplomada a ensinar na cidade de Jucurutú, região seridoense, nos idos de 1928. Essa Mestra, Olívia Pereira Rodrigues, é a minha mãe, daí o convite para o auxílio na pesquisa. Já colhemos relatos preciosos de alguns ex-alunos, assim como da única remanescente do corpo de magistério do Grupo Escolar Senador Guerra, de Caicó, dos anos 40, a Professora Guiomar Nóbrega. Na seqüência, visitamos Nalva, para investigar o episódio da aquisição do primeiro piano para uma escola pública, na cidade de Caicó. Até então, esse instrumento musical não passava de objeto de desejo das classes pobres, sendo de consumo efetivo, embora em pouco número, apenas das famílias abastadas do lugar. Minha mãe havia estudado música, na Escola Normal de Natal, na década de 20, tendo sido aluna do maestro italiano Professor Giuseppe Babini. Ao retornar ao seridó, já diplomada, e depois de sua passagem pela Escola Rudimentar Mista de Jucurutú, entre 1928 e 1930, já lecionando em Caicó, resolveu, certo dia, incentivar o Maestro Manoel Fernandes de Araújo a fundar uma Escola de Bandolins, para os jovens da cidade, incluindo-se ela mesma no corpo de alunos. A Escola foi instalada no dia 28.10.1930, num domingo, pelas 5,00 hs da tarde, em evento registrado pelo famoso fotógrafo Zé Ezelino.

A Professora Olívia sempre foi aficionada pela arte musical. Não prosseguiu nos estudos instrumentais, é verdade, mas, na sua atividade de magistério, transformou o seu amor àquela arte num fator de valorização do seu mister pedagógico. Platão tinha razão ao afirmar que a música é “o instrumento educacional mais potente que qualquer outro”. O sonho daquela Mestra era aplicar a música como ferramenta pedagógica para a interpretação e a produção textual, no ensino fundamental; a música, para ela, podia ser um instrumento motivador e facilitador no processo de apropriação da leitura e da escrita. Daí que, não se dando por satisfeita com os bandolins, resolveu tornar o piano possível e acessível aos alunos pobres do seu querido Grupo Escolar. Junto com sua colega Guiomar Nóbrega, promoveram uma campanha para constituir fundos, através de festas populares, apresentações de teatro e canto, arrecadações no comércio.

Alcançada a meta, era chegada a hora da inauguração. A nossa anfitriã de hoje, Nalva Nóbrega, então a mais destacada pianista da sociedade caicoense, tinha que ser a concertista especialmente convidada para abrilhantar tão marcante acontecimento.  Filha de Zé Nóbrega e Altamira, uma família ilustre, que expandia música aos quatro ventos, dos terraços do seu palacete encantado, no Morro da Graça, com violões em cantata e pianos em serenata. Tudo ficou registrado em Ata daquele Grupo Escolar, de 19.11.1946. As músicas tocadas foram Danúbio Azul e La Cumparsita. Tempo em que o ensino em Caicó era permeado pela sonoridade do piano clássico e do canto dos hinos patrióticos, no hasteamento da bandeira antes das aulas, nas festas cívicas, nos discursos da Professora Júlia Medeiros, nos espetáculos cheios de simbologia e emotividade.

E isto tem a ver com a presença de minha mãe no contexto histórico da educação seridoense. Daí, a importância do nosso encontro no apartamento de Nalva Nóbrega. Foi uma tarde inesquecível. Parecia estarmos em Caicó, mas foi em Petrópolis, sentindo o cheiro de sargaço com maresia, de onde se vê, ao mesmo tempo, a lua nascendo por trás do mar, e o sol se pondo para as bandas do seridó infinito. Presentes ainda sua irmã Maria do Sagrado Coração, minha prima por afinidade, outra pianista exímia e de encantadora voz de soprano, e mais sua netinha americana, de 16 anos, Juliana Iluminata Wilczynski, já poliglota e componente do Coral Girl do Estado de São Francisco da Califórnia, solando Moon River, como gente grande.

Foi uma tarde verdadeiramente proustiana. Com uma diferença: no romance famoso, as madeillenes foram a passagem para o autor remontar ao tempo oculto na memória. Na casa de Nalva o processo se inverteu. O tempo veio antes, as madeillenes, depois. Primeiro, os assuntos, a reconstituição dos fatos, Caicó presente na memória viva de uma das suas mais expressivas damas – diria melhor, uma mademoiselle, na postura sempre jovial, nas maneiras finas, resplandecendo ainda mais, em cores e brilho, ao som do seu piano de calda, no fausto, no acolhimento, no requinte do ambiente, aquele ar de classicismo próprio dos lares europeus, retratados nos romances da belle èpoque - "Antigamente as moças chamavam-se mademoiselles, eram todas mimosas e muito prendadas” (Carlos Drumond).   É o que Nalva nos transmite, na expressão do olhar e na doçura da palavra: uma madame que encanta, na figura da mademoiselle de sempre.

No ar, pairava um misto de cosmopolitismo com o mais arraigado sentimento de pátria caicoense. Pois Nalva é da sua cidade e, ao mesmo tempo, do mundo. Caicó é a sua Cosmópolis, sua cidade universal. A narração de sua história de vida foi uma viagem no tempo. Na sua busca, Marcel usava o taxi de Odilon, marido de Celeste - como lembra Paulo Mendes Campos -, à cata de informações. O nosso chauffeur, a nos guiar no caminho da volta, só podia ser o de todas as eternidades – Seu Manoel da Sôpa

Foi assim o nosso caminho de volta a Swamm, nas estradas poeirentas do tempo, na viagem dos deslumbres e dos encantamentos. E foi vindo o seu momento de produção literária, uma poética que sugere influências ora do romantismo, ora das abstrações metafísicas de Fernando Pessoa. Pelo menos em Balada do sentimento vago” – (...) “algo que não foi dito/ tédio por fim sentido/ uma mágoa deplorada/ sem lhe saber o por que”, em que se sente a presença do poeta português, num misto de racionalidade pura e enleios do coração.

Num passe de magia, Nalva transforma em prodigiosas maravilhas o som do seu piano e, por que não dizer, das suas palavras, que “têm canto e plumagem”, para usar a expressão de Guimarães Rosa, em “São Marcos”. Ela nos contou tudo, tocou e nos encantou. Ao final, elegantemente, pôs-se em pé, a mão delgada pousando sobre o teclado, fez-se reticência. Não desceu o pano, não fechou o piano, mas rogou retornos e postergou despedidas. Como nos velhos e bons tempos de uma Caicó que ainda pulsa em nossos corações, encerrou a tarde-noite com os acordes de “Salão Grená”. A voz de Carlos Galhardo parecia ressurgir, do fundo das nossas almas, como um murmúrio da história. Era como se fosse a ação de uma força telúrica nos atraindo irresistivelmente à terra-mãe: “Sei que voltarás, pois hás de lembrar que foste feliz...”

Formatura das complementaristas

Um comentário:

  1. Que bom ver informaçoes de mei bisavô Manoel Fernandes de Araujo. Gostaria de saber mais...

    ResponderExcluir