UMA TARDE PROUSTIANA
COM NALVA NÓBREGA
José Antônio Pereira
Rodrigues – Procurador do Estado – Professor e Mestre em Direito
O Professor Nanael Simão Batista,
jucurutuense, está em fase de montagem de sua Dissertação de Mestrado em
Educação, na UFRN. Em seu trabalho, o autor aborda a trajetória pedagógica da
primeira professora diplomada a ensinar na cidade de Jucurutú, região
seridoense, nos idos de 1928. Essa Mestra, Olívia Pereira Rodrigues, é a minha
mãe, daí o convite para o auxílio na pesquisa. Já colhemos relatos preciosos de
alguns ex-alunos, assim como da única remanescente do corpo de magistério do
Grupo Escolar Senador Guerra, de Caicó, dos anos 40, a Professora Guiomar
Nóbrega. Na seqüência, visitamos Nalva, para investigar o episódio da aquisição
do primeiro piano para uma escola pública, na cidade de Caicó. Até então, esse
instrumento musical não passava de objeto de desejo das classes pobres, sendo
de consumo efetivo, embora em pouco número, apenas das famílias abastadas do
lugar. Minha mãe havia estudado música, na Escola Normal de Natal, na década de
20, tendo sido aluna do maestro italiano Professor Giuseppe Babini. Ao retornar
ao seridó, já diplomada, e depois de sua passagem pela Escola Rudimentar Mista
de Jucurutú, entre 1928 e 1930, já lecionando em Caicó, resolveu, certo dia,
incentivar o Maestro Manoel Fernandes de Araújo a fundar uma Escola de
Bandolins, para os jovens da cidade, incluindo-se ela mesma no corpo de alunos.
A Escola foi instalada no dia 28.10.1930, num domingo, pelas 5,00 hs da tarde, em
evento registrado pelo famoso fotógrafo Zé Ezelino.
A Professora Olívia sempre foi
aficionada pela arte musical. Não prosseguiu nos estudos instrumentais, é
verdade, mas, na sua atividade de magistério, transformou o seu amor àquela
arte num fator de valorização do seu mister pedagógico. Platão tinha razão ao afirmar que a música é “o instrumento
educacional mais potente que qualquer outro”. O sonho daquela Mestra era aplicar a música como ferramenta
pedagógica para a interpretação e a produção textual, no ensino fundamental; a
música, para ela, podia ser um instrumento motivador e facilitador no processo
de apropriação da leitura e da escrita. Daí que, não se dando por satisfeita
com os bandolins, resolveu tornar o piano possível e acessível aos alunos
pobres do seu querido Grupo Escolar. Junto com sua colega Guiomar Nóbrega,
promoveram uma campanha para constituir fundos, através de festas populares,
apresentações de teatro e canto, arrecadações no comércio.
Alcançada a meta, era chegada a hora da
inauguração. A nossa anfitriã de hoje, Nalva Nóbrega, então a mais destacada
pianista da sociedade caicoense, tinha que ser a concertista especialmente
convidada para abrilhantar tão marcante acontecimento. Filha de Zé Nóbrega e Altamira, uma família
ilustre, que expandia música aos quatro ventos, dos terraços do seu palacete
encantado, no Morro da Graça, com violões em cantata e pianos em serenata. Tudo
ficou registrado em Ata daquele Grupo Escolar, de 19.11.1946. As músicas
tocadas foram Danúbio Azul e La Cumparsita. Tempo em que o ensino em Caicó era
permeado pela sonoridade do piano clássico e do canto dos hinos patrióticos, no
hasteamento da bandeira antes das aulas, nas festas cívicas, nos discursos da Professora
Júlia Medeiros, nos espetáculos cheios de simbologia e emotividade.
E isto tem a ver com a presença de minha
mãe no contexto histórico da educação seridoense. Daí, a importância do nosso
encontro no apartamento de Nalva Nóbrega. Foi uma tarde inesquecível. Parecia
estarmos em Caicó, mas foi em Petrópolis, sentindo o cheiro de sargaço com
maresia, de onde se vê, ao mesmo tempo, a lua nascendo por trás do mar, e o sol
se pondo para as bandas do seridó infinito. Presentes ainda sua irmã Maria do
Sagrado Coração, minha prima por afinidade, outra pianista exímia e de
encantadora voz de soprano, e mais sua netinha americana, de 16 anos, Juliana
Iluminata Wilczynski, já poliglota e componente do Coral Girl do Estado de São
Francisco da Califórnia, solando Moon River, como gente grande.
Foi uma tarde verdadeiramente
proustiana. Com uma diferença: no romance famoso, as madeillenes foram a
passagem para o autor remontar ao tempo oculto na memória. Na casa de Nalva o
processo se inverteu. O tempo veio antes, as madeillenes, depois. Primeiro, os
assuntos, a reconstituição dos fatos, Caicó presente na memória viva de uma das
suas mais expressivas damas – diria melhor, uma mademoiselle, na postura sempre
jovial, nas maneiras finas, resplandecendo ainda mais, em cores e brilho, ao
som do seu piano de calda, no fausto, no acolhimento, no requinte do ambiente,
aquele ar de classicismo próprio dos lares europeus, retratados nos romances da
belle èpoque - "Antigamente as
moças chamavam-se mademoiselles, eram todas mimosas e muito
prendadas” (Carlos Drumond). É o que
Nalva nos transmite, na expressão do olhar e na doçura da palavra: uma madame
que encanta, na figura da mademoiselle de sempre.
No ar, pairava um misto de
cosmopolitismo com o mais arraigado sentimento de pátria caicoense. Pois Nalva
é da sua cidade e, ao mesmo tempo, do mundo. Caicó é a sua Cosmópolis, sua cidade universal. A narração de sua história de
vida foi uma viagem no tempo. Na sua busca, Marcel usava o taxi de Odilon,
marido de Celeste - como lembra Paulo Mendes Campos -, à cata de informações. O
nosso chauffeur, a nos guiar no caminho da volta, só podia ser o de todas as
eternidades – Seu Manoel da Sôpa
Foi assim o nosso caminho de volta a
Swamm, nas estradas poeirentas do tempo, na viagem dos deslumbres e dos
encantamentos. E foi vindo o seu momento de produção literária, uma poética que
sugere influências ora do romantismo, ora das abstrações metafísicas de
Fernando Pessoa. Pelo menos em “Balada
do sentimento vago” – (...) “algo que não
foi dito/ tédio por fim sentido/ uma mágoa deplorada/ sem lhe saber o por que”,
em que se sente a presença do poeta português, num misto de racionalidade
pura e enleios do coração.
Num passe de magia, Nalva transforma em
prodigiosas maravilhas o som do seu piano e, por que não dizer, das suas
palavras, que “têm canto e plumagem”, para usar a expressão de Guimarães Rosa,
em “São Marcos”. Ela nos contou tudo, tocou e nos encantou. Ao final,
elegantemente, pôs-se em pé, a mão delgada pousando sobre o teclado, fez-se
reticência. Não desceu o pano, não fechou o piano, mas rogou retornos e
postergou despedidas. Como nos velhos e bons tempos de uma Caicó que ainda
pulsa em nossos corações, encerrou a tarde-noite com os acordes de “Salão Grená”.
A voz de Carlos Galhardo parecia ressurgir, do fundo das nossas almas, como um
murmúrio da história. Era como se fosse a ação de uma força telúrica nos
atraindo irresistivelmente à terra-mãe: “Sei
que voltarás, pois hás de lembrar que foste feliz...”
Formatura das complementaristas
Que bom ver informaçoes de mei bisavô Manoel Fernandes de Araujo. Gostaria de saber mais...
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