segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

 
FAZ TEMPO...
(Bartolomeu Correia de Melo)

Era ainda menino-velho guenzo e feio quando chegou do interior praquele sobradinho sem quintal. Logo ele, criado solto entre fruteiras, que nem caga-sebite... O jeito era ganhar a rua, zangando pai e esgoelando mãe. Embora que, por medo de papa-figo, pouco se aventurasse além dum grito de distância. E pusera-se então a reinar feliz, posseiro de calçadas e terrenos baldios, jogando bola-de-gude no inverno e bola-de-meia no verão.
Como já tinha a vista rombuda, era demais cegueta no jogo de biloca. Daí que arrumou uma roleta, na qual se apostavam as ditas bolinhas de tilar. Findou sendo dono de invejável fortuna em bolas-de-vidro, estampas de sabonete “Eucalol” e notas de carteira-de-cigarro. Tinha muitas - mazaroio assim - daquelas vermelhas da marca “Columbia”, que valiam três de cigarro “Continental” e cinco das amarelas de “Astória”. Se bem que todo aquele capital não valesse nem meio velocípede, sonho azul jamais possuído. Passada a mania das bilocas, trocou toda riqueza por time de botões de quenga, dando ainda baladeira como volta. Time esse, tempos depois, confiscado em pago dum zero em aritmética. Penosa perda, pois, além do bom prumo de campeão, os nomes dos botões faziam acróstico do nome dele: Jurubeba, Bolachão e Alicate; Rolabosta, Tapioca e Ortelã; Lagartixa, Ovo-goro, Macacão, Espanta-coió e Urubuzinho.
Nos quatro aceiros do bairro, tanto pintou lambanças e quanto bordou lembranças...
Aquela ruazinha ladeirosa e esburacada, descendo até virar precária escadaria, desaguava enxurradas na Ribeira. Porém, dali se avistava riqueza-mor da paisagem natalense, mais parecendo uma pintura de Thomé. Era quando o sol vadiava restos de hora, no contraluz das palmeiras do Salesiano, pondo carmins cor-de-estio nos confins do além-rio. Naquilo se espichavam, que nem sombras barrocas, as primeiras e vagas tristezas de menino-velho.
Então, Petrópolis era bairro seminovo, ainda meio misturado, no dizer da mãe neta-pobre. Casonas modernosas, de terraço e jardim, tangendo ladeiras abaixo acanhadas casinhas de porta e janela. Aquele sobradinho, modesto mas enxerido, brotado no alto da descida, tinha varandim remediado, feito de cobongós. Jeito ainda meio suburbano, algo assim sobrevivente, quase além dos ganhos do pai e aquém dos sonhos da mãe. Ali perto da bodega de Ubaldo, nas bandas da Rádio Poti, logo abaixo do sapotizeiro de seu João Lourenço; vizinho-direito da família Rayol, vigiado pelos gansos de dona Lia de seu Joaquim Victor de Holanda.
Na ruazinha de nome deslembrado passavam pregões de garrafeiro e tingo-lingos de cavaco chinês. Descia seu Olívio da Confeitaria Delícia, deixa-que-chutando, a driblar pocinhas de lama. Subia o vate Bezerra Júnior, passo ainda firme, metrificando versos resmungados. Seu Gurgel, bedel do Atheneu, no pino do meio-dia, muito rosado, suado e zangado. Esfriando o mormaço, chegava aquela brisa camarada, boa de empinar coruja. Depois, já no lusco-fusco, surgia o velho Cambraia, feito risonho reclame da noite, gritando seu ramerrão:
- Olholhope, o Jorná de Natá, o Jorná de Natá; olholholhope, o Jorná de Natá!...
Depois do jantar, a meia-lua pousava inteira sobre os vagos mistérios da Ribeira... Seu Luiz Romão tocava na vitrola - fanhosa e avexada - valsinhas quase em ritmo de baião. Sonolento, o pai olhava as horas lá no relógio luminoso da estação. A mãe angicana, solfejando baixinho cantigas da vitrola, esperançava relampeios no rumo do sertão. Nesse enquanto, o irmão bonzinho escrevia tarefas de escola, ele vadiava, solto na buraqueira, abusando do direito de correr mil brincadeiras.
O patrão do pai e a lavadeira da mãe moravam por perto, naquele bairro ainda inacabado. Os filhos deles eram seus contrários nos jogos de pião e de botão e irmãos-de-sangue nas peladas tira-teima e guerras de carrapateira. Ele achava nos amigos pobres maior esperteza e melhor sinceridade, embora os ricos parecessem mais hábeis e interessantes. No fundo, sentia casta inveja de ambos, pois que achado tímido e simplório. No meio deles se gratificava, como que dissolvido no grupo, compartilhando inatingíveis qualidades. E aquilo bem que lhe bastava; ser apenasmente o Prof. Garrancho, insossa magreza de óculos, terceiro reserva de goleiro e soldado raso nos tiroteios de mamona. Uma turminha de cobras, criados entre os barrancos e areais daquelas quadras. Quase sempre ganhava na bola e no pique para os da Guaratuba, da Condor, da Bica da Telha e até para a estrangeira Camboim. Mas sempre perdia, no braço e na baladeira, para a vizinha turma da Tabica, rival maior, que era mesmo cipó-de-araruta. E haja cada apelido... Lambreta, Tarzan, Didica; Bolo-Preto, Bicudo, Chico Sapo; Cabo Guido, Bacurau, Fermento, Magnésia, Chapuleta... Timão de pariceiros de grandes jornadas.
Mas aquilo, como tudo gostoso ou proibido, durou pouco mais que um pouco.
Era ainda rapazinho-novo, magro e malamanhado, quando deixou aquelas esquinas, onde os postes de ferro soavam como sinos e os rabos de corujas enfeitavam a fiação. Ruazinhas descalças, molequeira na bola-de-meia, rapaziada nas últimas serenatas, moçada nos folguedos de pastoril. Ali se enturmara, aprendendo os outros, tão diferentes, na feliz igualdade da meninice. Tempo de domingos alegres e primeiras sextas-feiras; doçuras de frutas roubadas e amarguras de boletins vermelhos. No azul-maroto dum olhar sonso de menina-moça, apaixonou-se pela mão direita...
A vida que tantos juntara, a todos separou, no rumo de cada destino. Aquela turminha deu mesmo de tudo; de trambiqueiro a deputado, de empresário a biscateiro, de jogador a professor, de médico a agente funerário. Alguns, ainda hoje, lhe acenam da outra calçada; se bem que nem todos cruzem a rua para o abraço. Outros passam-lhe rente, fitando o vazio no instante do olá; por vezes, só espiam pelas costas. Aonde andarão os que sumiram sem notícias?... Contudo, sempre espera que esses avistados lhe falem primeiro; talvez porque, quando os reencontra, sinta voltarem aqueles longes dias. Afinal, em tais quandos, eram bem mais importantes; mais certeiros na baladeira, mais ligeiros nos dribles, mais despachados nas arengas, mais sabidos nas putarias... Ele apenasmente retornado ao Prof. Garrancho, magreza de óculos, goleiro frangueiro e rexingado, mas feliz e honrado em fazer parte da turma.
Nunca mais viu nem o azul daquele olhar que alumiava safadeza, nem sentiu falta da mão direita. Aquele menino-velho do sobradinho, ali ficado na beira da descida, resta muito e apenas professor, escrevivente de relembranças. Ainda quedo entre o sonho da riqueza e o medo da pobreza, como nos dias de velocípede e bola-de-meia. Sem mais ilusões de domingos alegres, segue a roleta da vida, perdendo a pureza das primeiras sextas-feiras.
Saudade tinindo que nem pedrada em poste de ferro.
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Para Marcos Luis Massena
De Geniberto Campos,
  
Fev 2 em 8:52 AM
Caro Marcos,
Na verdade, estou ainda sob o impacto do texto do Bartolomeu.
Não só por ter vivido nas adjacências da rua em que ele morava, em Natal, e comovido pelas lembranças afetivas que evoca.
A qualidade do texto impressiona. E cria aquela situação na qual não podemos estabelecer comparações: - esse Bartolomeu escreve parecido com quem?
Não adianta lembrar nossas referências de costume. O Bartô é grande. É único. Exagero? Acho que não.
Ele pega o leitor logo no primeiro parágrafo. “Guenzo” = feio, desajeitado, era um termo usado em nossa casa para designar isso mesmo.
“ERA AINDA MENINO- VELHO FEIO E GUENZO QUANDO CHEGOU DO INTERIOR PRAQUELE SOBRADINHO SEM QUINTAL.”
Tem aí alguma coisa de alto valor literário. Toda a crônica (é crônica mesmo?) do Bartolomeu flui de maneira suave e verdadeira.
Fico lhe devendo essa.
Um bom domingo.
Copio para dois amigos natalenses.
Geniberto
 

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