Folha de São Paulo ( caderno Opinião )
30/06/2013 - 03h30
Miguel Srougi: Depredando a saúde da nação
Como cidadão, fiquei
deslumbrado com o clamor que varre a nação. Como médico, e ligado à saúde,
mergulhei em esperanças. Contudo, com a mesma velocidade que esse sentimento
aflorou, fui tomado por uma angústia incontida ao observar as manifestações
oficiais.
Anunciou-se
solenemente que seriam importados milhares de médicos estrangeiros e injetados
R$ 7 bilhões em hospitais e unidades de saúde. Também se propôs a troca de R$
4,8 bilhões de dívidas dos hospitais filantrópicos por atendimento médico e foi
anunciada a criação de 11.400 vagas de graduação em escolas médicas.
Perplexo, gostaria de
dizer que essas propostas são tão surrealistas que não podem ter sido
idealizadas por autoridades sérias, mas sim por marqueteiros afeitos à
empulhação. Piores do que os depredadores soltos pelas ruas, já que destroem
vidas humanas.
A medicina exercida
condignamente pressupõe equipes qualificadas, não apenas com médicos, mas
também com enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Exige instalações
minimamente equipadas, para permitir diagnósticos e tratamentos mais simples.
Necessita do apoio de
farmácias, capazes de prover sem ônus para os necessitados, as medicações
essenciais. Requer processos de higiene, assepsia e certo conforto, para dar
segurança e respeitar a dignidade humana dos pacientes.
O que farão os médicos
estrangeiros nas áreas remotas do Brasil apenas com termômetros e estetoscópios
nas mãos? Irão receitar analgésicos, antidiarreicos e remédios para tosse, o
que poderia ser mais bem executado por qualquer prático de farmácia, também
afeito às doenças regionais. Médicos que nos casos mais delicados nem atestado
de óbito poderão assinar, pois não conseguirão identificar a causa da
infelicidade.
Pior ainda, como esses
médicos conseguirão atuar limitados pela dificuldade de comunicação,
desqualificados para tratar doenças já erradicadas em países sérios, frustrados
por viverem em regiões destituídas de condições mais dignas de existência para
eles próprios, suas mulheres e seus filhos? Certamente tratarão de migrar para
centros mais prósperos, abandonando aqueles que nunca conseguirão expressar a
desilusão.
Não custa lembrar que
muitos países desenvolvidos aceitam médicos estrangeiros, contudo nenhum deles
atua sem ser aprovado em exames extremamente rigorosos, que atestam a elevada
competência profissional.
Igualmente falaciosa é
a proposta de incrementar os recursos para a saúde. Num país como o Brasil, que
gasta apenas 8,7% do seu Orçamento em saúde --muito menos que a Argentina
(20,4%) e Colômbia (18,2%)-- somente mal-intencionados poderão acreditar que um
aporte de recursos de 0,7% corrigirá a indecência nacional.
Também enganadora é a
ideia de se recorrer às instituições filantrópicas. Em situação falimentar,
deixam de pagar tributos porque não recebem do governo federal os valores
justos pelo trabalho. Pelo mesmo motivo, serão incapazes de aumentar o já
precário atendimento.
Quanto à criação de
novas vagas para alunos de medicina, nada mais irrealista. Para acomodar os
números apresentados, o governo teria que criar entre 120 e 150 escolas
médicas. Com que recursos? Com que professores? Com que hospitais?
Presidente, termino
pedindo desculpas pela minha insolência. Você, que é digna e tem história, não
pode tergiversar perante o clamor de tantos filhos da nação. Faça ouvidos
moucos ao embuste e combata de forma sincera os malfeitos.
Assuma, de forma
sincera e não dissimulada, a determinação política de priorizar os recursos
para as áreas sociais. Para não ser tomada por angústia infinita ao cruzar com
a multidão, entoando com indignação o canto de Chico Buarque: "Você que
inventou a tristeza/ Ora, tenha a fineza/ De desinventar/ Você vai pagar e é em
dobro/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar".
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MIGUEL SROUGI, 66, pós-graduado em
urologia pela Universidade de Harvard, é professor titular de urologia da
Faculdade de Medicina da USP e presidente do conselho do Instituto Criança é
Vida.
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Colaboração do Dr. Ernani Rosado
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