quinta-feira, 31 de março de 2022

 

Do caviar para a quiabada

BERILO DE CASTRO

Abrindo a minha página de e-mails, deparo-me com a boa crônica (como sempre) do jornalista, cronista Tomislav Femenick, intitulada de “Royal Salute, Caviar e Faisão”. A narrativa me fez lembrar de raspão de um episódio que aconteceu comigo no início da década de 1970.

Quando terminei o curso médico em 1969, fui fazer pós-graduação na cidade Santa Brasileira (das igrejas e dos seus terreiros de candomblés), Salvador/Bahia. Passei a residir no 5º andar do Hospital Universitário Professor Edgar Santos, no bairro do Canela, centro. Residência médica super aproveitável, bons ensinamentos e boas amizades.

Durante o período conheci pessoas simples, funcionários do Hospital, com as quais fiz boas e sinceras amizades e nunca me neguei a atendê-los quando necessitavam dos meus serviços.

Certo momento, devido a esses pequenos e cordiais atendimentos, fui convidado para um aniversário ou uma festinha na casa de uma funcionária do serviço de RX. Cheguei na hora combinada, irradiando alegria, por saber que estava sendo carinhosamente bem recebido por um pessoal simples e de amizade sincera.

Bom papo, conversa animada, foram servidas umas meladinhas, bebida semelhante à nossa caipirinha, que o baiano usa mel de abelha e faz a mistura girando com uns pauzinhos. Depois de algumas horas foi servido o jantar. O prato principal e único foi uma grande quiabada (prato predileto e muito especial da gastronomia baiana). O bendito foi posto na mesa central; cheirava mais do que


filho de barbeiro e babava mais do que epilético em forte crise de convulsão. O detalhe maior vem agora: não gosto, nem como quiabo, nem amarrado, nem sobre torturas fleuriana; ojerizo o babado do quiabo, o seu cheiro e o seu gosto me fazem arrepiar e nausear.

A atenção da anfitriã estava sempre voltada para o doutor, que aceitou o convite e estava alí presente para saborear o delicioso prato baiano.

Fui o primeiro a ser servido com muita gentileza e carinho pela própria aniversariante. Fez aquele prato digno  da fome de um trabalhador servente de construção, depois de tomar como aperitivo uma “senhora” lapada de 51.

A quiabada se espraiava até as beiradas do meu prato; recebi agradecido e comecei a imaginar o que fazer. Comecei a suar frio, empurrando, lentamente, a vara e a remo a danada de garganta abaixo, ao mesmo tempo enguiando a baba do quiabo. Quando menos espero, a amiga olha para o meu prato e diz: o doutor está adorando, espere aí que vou trazer mais um pouquinho! E voltou a aumentar o volume da quiabada no meu prato. Senti uma pontada no peito e uma vontade de sair correndo de porta afora a mil por minuto.

Com uma jogada de mestre e de mágico do Circo Nerino, fui me deslocando de fininho com o prato na mão; aproveitei um cantinho de parede e deixei a danada da quiabada, com saudade maiúscula da gostosa galinha torrada dos domingos que minha mãe Alice preparava.

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