Rigidez e reforma
Como de praxe, postei na rede de e-mails dos Procuradores da República o
artigo que publiquei aqui na semana passada - “O problema do nosso
modelo misto”. Nessa rede, um colega Procurador, interessado no tema e
curioso, fez algumas perguntas interessantíssimas: em era de súmulas
vinculantes, uniformizações, etc., como fazer para a jurisprudência
evoluir se os recursos sequer têm trâmite porque a decisão atacada está
de acordo com o entendimento consolidado no Tribunal ou na Súmula? E se
esse não for o melhor entendimento, ele ficará “cristalizado” para
sempre?
De fato, ele tocou num ponto importantíssimo: uma das
maiores críticas a qualquer modelo de precedentes vinculantes é o
possível engessamento do sistema como um todo, o que, sem dúvida, é algo
preocupante.
Nos países que adotam a teoria do “stare decisis”
(ou seja, de vinculação geral aos precedentes), o fato de as cortes
terem de seguir seus próprios precedentes e os precedentes das cortes
superiores faz o sistema, em princípio, ser tido por bastante rígido.
Sobretudo, porque, como se sabe, apenas em pouquíssimos casos, a partir
da persistência das partes, um processo chega, por exemplo, à Suprema
Corte do Reino Unido (que substituiu, no topo do aparelho judicial
daquele país, a House of Lords) ou à Suprema Corte dos Estados Unidos, o
que parece não ser o caso do Brasil, onde “tudo” chega ao Supremo
Tribunal Federal. Por óbvio, não é salutar imobilizar a evolução natural
da jurisprudência.
Entretanto, é necessário esclarecer melhor as coisas.
Os sistemas que adotam a teoria do “stare decisis” têm também a sua
faixa de flexibilidade, que é maior nos Estados Unidos do que na
Inglaterra. Entre outras coisas, há, primeiramente, o poder de
distinguir, que, usado corretamente, dá aos tribunais liberdade para se
afastar de decisões anteriores; ademais, mesmo que seja uma exceção, há a
possibilidade do “overruling”, que servirá para, revogado um precedente
considerado incorreto, desenvolver o Direito.
O exemplo dos
Estados Unidos serve para comprovar que a existência da vinculação aos
precedentes dentro de um sistema jurídico não quer significar
imutabilidade perpétua. Na verdade, havendo uma decisão anterior de
seguimento obrigatório, o que está vedado ao julgador é apartar-se dela
arbitrariamente; todavia, é possível afastar-se do precedente mediante o
emprego de uma fundamentação suficiente e razoável.
Como explica
Andrés Ollero Tassara (em “Igualdad en la aplicación de la ley y
precedente judicial”, Centro de Estudios Constitucionales, 1989): “A
vinculação ao precedente não impedirá que o órgão judicial mude a
interpretação de uma norma e, com isso, dê entrada a um novo processo de
normatização jurisprudencial. A sucessão de paradigmas interpretativos
na aplicação de idêntico texto legal vem exigida pela história da
realidade social e jurídica, constituindo uma exigência da justiça. Para
garantir a justiça e - subsidiariamente - preservar a segurança
jurídica, o juiz tem de apresentar uma fundamentação objetiva e
razoável. Deverá fazê-lo em todos os casos em que mude de critério
interpretativo diacronicamente, diferentemente do legislador, cujo
relacionamento direto com a soberania popular faz presumir legítima
qualquer mudança normativa, devendo justificar tão-somente as mudanças
que impliquem um tratamento sincrônico desigual entre os cidadãos”.
No mais, quanto às súmulas - e especialmente quanto à Súmula Vinculante
do Supremo Tribunal Federal -, há mecanismos de correção e atualização
já previstos. O § 2º do art. 103-A da Constituição Federal (e a Lei
11.417/06, que regulamenta o instituto) estabelece a possibilidade de
revisão ou cancelamento de enunciado da Súmula Vinculante, que se torne,
por algum motivo, incompatível com o Direito. O próprio Supremo
Tribunal Federal, de ofício, por proposta de um ou mais de um de seus
ministros, poderá proceder à revisão ou ao cancelamento da súmula.
Ademais, prevendo a legitimidade para a provocação externa, o § 2° do
art. 103-A da CF dispõe que, sem prejuízo do que for estabelecido em lei
(a Lei 11.417/06), a revisão ou o cancelamento de súmula poderá ser
provocado por aqueles que gozam da prerrogativa de propor a ação direta
de inconstitucionalidade e que atuam como legítimos representantes da
sociedade.
Bom, finalizando, acho que a “regra de ouro” é ter um
bom sistema de precedentes vinculantes (que proporcione uniformidade,
estabilidade etc.) com mecanismos que permitam correções e atualizações
(tipo o previsto para a Súmula Vinculante do STF).
E eu mais uma vez pergunto: quanto a isso, alguma ideia, caro leitor?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Nenhum comentário:
Postar um comentário