terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O Globo - 15.01.2015



BLASFÊMIA    - Luis Fernando Veríssimo


Vamos combinar que não existe  nada mais ofensivo do que um tiro na cabeça. Não posso imaginar uma blasfêmia maior do que espalhar os miolos d alguém com um AK-47. Porque tem gente dizendo  que os cartunistas do “Charlie Hebdo” foram longe demais, o que equivale a dizer  que mereceram o que lhes aconteceu. É o mesmo raciocínio de quem diz que mulher estuprada  geralmente estava pedindo.
“Blasfêmia” quer dizer uma afronta ao sagrado. Assim, a verdadeira discussão  não é sobre o que as pessoas consideram  blasfêmia, mas sobre o que consideram sagrado. A descrença em qualquer divindade é uma blasfêmia perene – ou, visto de outra forma, quem não crê em nenhum deus não pode, por definição, ser um blasfemo.
Muitas vezes o que se faz em nome de uma crença ou de uma divindade é que é blasfêmia: uma  ofensa a quem  acha que sagrado deve ser a vida humana, o direito de pensar livremente e o direito de descrer. Não se está falando só do islamismo radical. Já houve tempo em que não acreditar no Deus da Igreja Romana era razão suficiente para ser queimado vivo. Levava mais tempo do que um tiro de AK-47.
Mudando de assunto, mas não muito. A reação de George W. Bush aos ataques ao World Trade Center foi da catatonia, quando recebeu a notícia,  à hiperatividade impensada que resultou  na transformação  da base americana de Guantánamo em campo de concentração para “terroristas” que, na sua maioria, não tinham nada a ver com o atentado e, mais tarde,  na invasão  do Iraque para pegar Saddam, que também  não tinha nada  com o Onze de Setembro, e as  suas armas de destruição em massa, que não existiam. Mas, faça-se  justiça: num dos seus primeiros pronunciamentos depois dos ataques, quando já se sabia quem eram os responsáveis,  Bush fez questão de alertar contra  as perseguições aos muçulmanos no país,  que não tinham culpa da ação radical de uma minoria.
Na França pós-Sete de Janeiro, com sua imensa população muçulmana, vítima de boa parte da  maioria  e da crescente reação  a imigrantes em toda Europa,, vai ser difícil seguir um conselho como o do Bush.  A direita inchou do Sete de Janeiro  para cá, na França. Se sua pregação racista  vai prevalecer contra a tradição  libertária da terra do direitos humanos, é o que se verá  nas próximas eleições. Os AK -47 podem ter matado muito mais que 17 pessoas.

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