BLASFÊMIA - Luis
Fernando Veríssimo
Vamos combinar que não existe nada mais ofensivo do que um tiro na cabeça.
Não posso imaginar uma blasfêmia maior do que espalhar os miolos d alguém com
um AK-47. Porque tem gente dizendo que
os cartunistas do “Charlie Hebdo” foram longe demais, o que equivale a
dizer que mereceram o que lhes
aconteceu. É o mesmo raciocínio de quem diz que mulher estuprada geralmente estava pedindo.
“Blasfêmia” quer dizer uma afronta ao sagrado. Assim, a
verdadeira discussão não é sobre o que
as pessoas consideram blasfêmia, mas
sobre o que consideram sagrado. A descrença em qualquer divindade é uma
blasfêmia perene – ou, visto de outra forma, quem não crê em nenhum deus não
pode, por definição, ser um blasfemo.
Muitas vezes o que se faz em nome de uma crença ou de uma
divindade é que é blasfêmia: uma ofensa
a quem acha que sagrado deve ser a vida
humana, o direito de pensar livremente e o direito de descrer. Não se está
falando só do islamismo radical. Já houve tempo em que não acreditar no Deus da
Igreja Romana era razão suficiente para ser queimado vivo. Levava mais tempo do
que um tiro de AK-47.
Mudando de assunto, mas não muito. A reação de George W.
Bush aos ataques ao World Trade Center foi da catatonia, quando recebeu a
notícia, à hiperatividade impensada que
resultou na transformação da base americana de Guantánamo em campo de concentração
para “terroristas” que, na sua maioria, não tinham nada a ver com o atentado e,
mais tarde, na invasão do Iraque para pegar Saddam, que também não tinha nada com o Onze de Setembro, e as suas armas de destruição em massa, que não
existiam. Mas, faça-se justiça: num dos
seus primeiros pronunciamentos depois dos ataques, quando já se sabia quem eram
os responsáveis, Bush fez questão de
alertar contra as perseguições aos
muçulmanos no país, que não tinham culpa
da ação radical de uma minoria.
Na França pós-Sete de Janeiro, com sua imensa população
muçulmana, vítima de boa parte da
maioria e da crescente
reação a imigrantes em toda Europa,, vai
ser difícil seguir um conselho como o do Bush.
A direita inchou do Sete de Janeiro
para cá, na França. Se sua pregação racista vai prevalecer contra a tradição libertária da terra do direitos humanos, é o
que se verá nas próximas eleições. Os AK
-47 podem ter matado muito mais que 17 pessoas.
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