(Lívio Oliveira)
Invejava os presos e os doentes. Não havia mais qualquer dúvida de que algo demasiadamente estranho acontecia no íntimo pensamento daquele velho e decadente escritor. Havia passado toda a vida em busca das horas abertas e plenas e que abrigassem eternas palavras, as mais preciosas e que pudessem ser enfeixadas entre centenas de páginas e capa e sobrecapa em cores e letreiros lustrosos, chamativos. Teria ali o seu nome gravado para a eternidade, num almejado livro a ser celebrado por provincianos leitores e críticos passionais e interesseiros. Sentava, dia a dia, numa cadeira dura, diante da ultrapassada máquina de escrever.
Quase nada surgia daquele colossal esforço. Era triste e ridícula a cena infinita. Daí surgia aquela inveja mórbida cujo objeto eram seres ilhados, solitários, ensimesmados, mas que se permitiam a poesia, mesmo que doentes ou presos, porque detinham o tempo em suas mãos sujas e cheias de calos da vida. E não se aceitava o escritor em meio àquela balbúrdia medíocre que lhe sobrava. Todos opinavam. Eram muitos os que possuíam razões infinitas e inconfrontáveis. Somente as opiniões do pobre e vetusto escriba eram ralas, rasas e desprovidas de qualquer conteúdo estético e literário. E terminavam sempre, e por essa mesma razão, não chegando a preencher os alvos papéis, que assim continuavam: branquinhos, branquinhos…
Já se desesperava, por óbvios motivos. Estava num tempo sombrio, caótico, no topo da melancolia e da total ausência de inspiração. Quase todos os seus antigos parceiros de boêmia e de tolos improvisos poéticos em saraus e tertúlias de arrabaldes já haviam se despedido, ingressado noutra esfera, encostado as botinas surradas, empoeiradas, mas com percurso em estradas cheias de palavras. Sobrava-lhe, então, somente o saudosismo tardio, intempestivo. E a beleza? Essa lhe faltava à pena. A inércia de pensamento abandonava o que de sensível ainda lhe constava entre dedos e entre olhos. As letras e palavras se rebelavam e produziam colossal escassez. Era um antipacto. Uma sede intensa de poesia e literatura, fosse ela qual fosse, rasgava aos poucos a alma e as retinas ressecadas do escritor caquético e insone e que não firmava mais fé em ter ingresso junto a academias beletristas ou conselhos de letras quaisquer. Não mais tentaria tal feito heroico.
Nada. Ninguém surgia no horizonte desértico de ideias enquanto aquele ser entristecido urrava intimamente de dor. Uma dor seca. Um buraco. Talvez a morte lhe caísse bem. Mas é que o capítulo de sua novela perene ou o seu aguardado conto ainda não havia chegado a tanto. E restava ali, empobrecido de sensações e pensamentos, enquanto mirava um escuro quadro através da janela. Algo que lembrava Caravaggio, Velásquez ou Goya, nem isso sabia ao certo identificar. Avistava as poucas luzes da igreja barroca defronte: a única da cidade naquele estilo. Era um retrato agudo do abandono e da dor, um retorno – em meio a ciclones psicológicos e frenesis – a um incômodo passado. Lembrou, num estalo, que ali casara uma de suas primas, a mais bela de todas. Baixou o olhar lentamente até o piso de mosaicos ásperos e, ao erguer novamente os olhos, deparou-se com um espelho rígido e opaco. Sentiu-se como no final do livro de Wilde.
A essa altura já havia descoberto que a prima não mais existia, nem o belo vestido de noiva que usou no dia fatídico. E também não havia ali – naquela pequena sala com janela aberta para a igreja noturna – a máquina de escrever, os papéis amarelados, as ideias rotas, incompletas. E não havia mais qualquer escritor e nem os seus fracassos e delírios. O tempo lhe havia aprisionado definitivamente entre as grades absurdas da loucura. Nunca mais seria um imortal.
______________*Texto também publicado no jornal Tribuna do Norte
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