Sobre Kelsen
Outro dia, perambulando pela Livraria Cultura no Recife (localizada no agradável Shopping Paço Alfândega), dei de cara com "A autobiografia de Hans Kelsen" (2012), publicada pela Forense Universitária, como parte da "Coleção Paulo Bonavidades". O tomo tem coisa de duzentas páginas, embora apenas umas cem sejam obra do "Mestre de Viena". O restante é formado por estudos introdutórios, bem interessantes, à vida e à obra do grande jurista (além de fotos históricas).
Hans Kelsen, embora conhecido como o "Mestre de Viena", nasceu, segundo suas próprias palavras, "em 11 de outubro de 1881 em Praga" (tendo falecido, em 1973, nos EUA). Praga que era, à época, parte do Império Austro-Húngaro. Aos três anos, o menino Hans, juntamente com a família, muda para Viena, onde, para além dos estudos fundamentais, cursa Direito. Ali se torna, no começo do século XX, professor na Faculdade de Direito de Viena. E por aí vai, chegando à sua estada nos Estados Unidos na década 1940 (como professor nas Universidades de Harvard e Berkeley, entre outras), a "autobiografia" do jurista que, se esse prêmio existisse, seria certamente um dos ganhadores do "Nobel de Direito".
Não vou tratar aqui, todavia, da vida de Kelsen. Seria despropositado, até por uma questão de espaço. Aos interessados, vai a sugestão de uma leitura completa de "A autobiografia de Hans Kelsen". Vou apenas relembrar os dois aspectos que reputo os mais importantes da vida/obra desse célebre jus-filósofo.
Primeiramente, o Kelsen criador da "Teoria Pura do Direito", obra/teoria publicada em 1934, quando ele já lecionava em Genebra, na Suíça, fugindo da Alemanha de Hitler. Quando este se tornou chanceler do Reich, Kelsen foi, como ele próprio diz, "um dos primeiros professores a serem demitidos pelo governo nazista" (era professor em Colônia). Sobretudo por essa obra, juntamente com os ingleses John Austin (1790-1859) e H. L. A. Hart (1907-1992), entre outros, Kelsen é considerado - e muitas vezes injustamente criticado por isso - um dos baluartes do positivismo jurídico (no seu caso, da tendência "normativista"). Ocupando-se do fundamento e da legitimação do Direito, Kelsen preocupou-se com a averiguação dos pressupostos lógico-formais de sua existência, exaltando a norma jurídica, ponto em torno do qual gira toda a sua concepção do Direito. De certa forma separando as noções de Justiça e Direito, Kelsen propôs uma abordagem do Direito impermeável às reflexões sociológicas, morais, éticas, teleológicas etc. Considerando fundamental se ter um sistema ou uma "lógica" de Direito Positivo, Kelsen, assim como havia feito Austin, desenvolveu um sistema articulado do Direito. Partindo da ideia do que chamou de "norma fundamental", sua empreitada foi, sob certo sentido, desenvolver, partindo dessa premissa, um sistema de Direito logicamente coerente e consistente.
Em segundo lugar, quero destacar o Kelsen, se não o criador, pelo menos o sistematizador do modelo europeu de "corte constitucional" para fins de controle concentrado de constitucionalidade. Ao contrário do modelo americano de controle de constitucionalidade das leis (difuso), nascido da prática e no silêncio dos textos, o modelo europeu é, em larga medida, fruto do trabalho teórico do "Mestre de Viena". Embora também não se possa negar que projetos filosóficos, políticos e jurídicos anteriores preparam o terreno para a justiça constitucional europeia do século XX: o "achado" de Kelsen, nesse ponto, é mais ponto de chegada do que ponto de partida, com bem disse o nosso Rui Medeiros (se não estou enganado).
O fato é que, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, desabrocham na Europa reflexões e tentativas de implementação de um efetivo controle de constitucionalidade das leis. A tentativa de maior sucesso (ou, pelo menos, de maior repercussão) vem com a Constituição da Áustria de 1920, pela qual, sob inspiração de Kelsen, cria-se uma Corte Constitucional, cuja função era, precipuamente, o controle concentrado da constitucionalidade das leis. Corte da qual Kelsen foi membro, como ele mesmo recorda na decantada "Autobiografia", até sua dissolução pela (criticada) "reforma constitucional de 1929".
Essa experiência austríaca, assentada nas teses de Kelsen, como se sabe, não ficou isolada. Espalha-se, ao longo do século XX, por toda Europa (desaguando, adaptadamente, no Brasil, com o nosso Supremo Tribunal Federal fazendo também o papel de nossa "Corte Constitucional"). E se "o século XIX foi o dos Parlamentos", como diz Dominique Rousseau (em "La justice constitutionnelle en Europe", 1998), isso fez do XX "o século da justiça constitucional". Kelsen - convencionalmente, pelo menos - é o "pai" de toda essa matéria.
Desta feita, sem que ninguém - de bom juízo, acrescento eu - o critique por isso.
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TN, Publicação: 30 de Setembro de 2012
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