Opinião
Recentemente estive no Rio de Janeiro e, entre a apreciação de muitas películas, daquelas que geralmente não são exibidas em Natal, parti com um grupo de estrangeiros para um giro geral pela favela da Rocinha. Apesar de todo o noticiário negativo sobre este recanto carioca, nunca fui de sentir medo em lugares pobres, invocando prova sobre esta afirmação, o fato de ter ido morar em Mãe Luiza 20 anos atrás, ficando lá por 18, causando com esta decisão muita apreensão aos meus pais, pelo fato do bairro ter presença constante na crônica policial da cidade e, ser considerado dos mais violentos de Natal.
Confesso que não sou dado a medos, tendo viajado para a Índia em 1990, ainda jovem, sem falar inglês e, sozinho, voando a partir de São Paulo numa aventura, que logo me apresentou outros místicos viajantes brazucas que, somados a meu ser, tornaram a viagem agradável e absolutamente tranquila e importante para todo o meu futuro. Ademais o medo de ter pouco dinheiro e levar uma vida espartana, de não casar, de não ter filhos, de contrair alguma moléstia grave, de fazer mal a alguém, de ser preso, corrupto, estuprador, cabra safado, até hoje não me assolou, posto que aos cinquenta e um, nada disso adesivou minha existência e, vou indo, sem também ter medo de ser feliz.
Valente e destemido demais não sou, mas na normalidade do meu agir e na tranquilidade do meu existir, fui para a Rocinha absolutamente livre de preconceitos e de paranoias. Quando chegamos ao pé do morro, tivemos que sair do veículo e subir em motos. Dois reais para cada motoqueiro e, o grupo subiu pela rua principal. O comércio é intenso, muitas motos, ônibus, carros, num perigo constante de acidentes por causa das curvas e do pouco espaço. Lembrei-me muito da Índia, onde o trânsito é a maior das aventuras do peregrino.
O comércio é variado, de perfumarias de grife a pequenos estabelecimentos, policiais espalhados por pontos estratégicos e, aquele natural bom humor do carioca presente o tempo todo. Subimos até um dos pontos mais altos da Rocinha, a agência da ECT e, de lá começamos a descida a pé, pelos becos apertadíssimos, de onde, à esquerda e a direita, surgem portas, grades, novos caminhos, num labirinto sem fim de salões de beleza, mercearias, barzinhos, jovens estudantes subindo e descendo e, o povo sempre gentil nas saudações e nos sorrisos generosos.
A guia autorizava o uso de imagens e disse que podiam ser feitas de qualquer maneira, sem reservas. Visitamos algumas ONGs, conversei com alguns moradores, comemos numa loja que no teto pendurava material de construção, no meio tinha pães, bolos e doces e, atrás produtos diversos da agricultura nacional.
Do alto de uma ONG deu para acompanhar uma patrulha da polícia militar fortemente armada percorrendo o lugar onde tínhamos passado. Testemunhei uma abordagem educada e nenhum problema registrado naquele trecho. Uma das cenas mais comuns é a quantidade imensa de fios amarrados e caídos quase ao nível da cabeça da gente, tubulações de água, um emaranhado imenso, não conseguindo entender como a água percorre tantos canos e a energia elétrica consegue adotar tantos gatos e não ter um colapso constante.
Fiquei refletindo ainda sobre os que moram do meio para o alto da Rocinha, a quantidade de degraus que precisam galgar para chegar a suas casas. O que acontece na emergência de um parto, uma ida ao hospital? Só com uma maca e pessoas fortes para percorrer aqueles intricados caminhos com peso.
O domínio da geografia do lugar é um exercício de muita familiaridade, coisa de quem nasce e vive mesmo ali. Desse beco principal, curtíssimo que passamos, outros muitos saem em direções várias, num mundo de lajes, arranjos, tudo ancorado em declives e aclives, passando a impressão que de uma hora para outra vai cair tudo aquilo.
Realmente os que acreditam em anjos da guarda para motoristas, crianças e bêbados, devem acreditar em anjos da guarda para favelas, aquele amontoado de moradias, coladas umas as outras, minúsculas, abrigando até oito pessoas em três ou quatro metros quadrados, só mesmo uma grande proteção espiritual permanente para manter uma estrutura daquela viva por tanto tempo.
Agora, o melhor, as favelas do Rio livres dos traficantes são lugares fantásticos, onde a vida acontece de maneira sadia, normal, com seus habitantes sorrindo, vivendo de maneira pobre, mas digna, onde a vontade de superar as adversidades fica mais próxima da luta diária pela sobrevivência, sem o componente do medo, sem a vergonha do preconceito e, sem o olhar temeroso da sociedade em geral.
As favelas do Rio e a Rocinha, onde estive, voltam a integrar o Grande Rio, o maravilhoso Rio, o inigualável Rio, cidade que elegi para ser a segunda melhor do mundo, depois de minha Natal, cidade em que, eu tendo condições financeiras um dia, faria minha segunda moradia, com muito orgulho e prazer, para ali subir muitas vezes na Rocinha, me inspirar para escrever livros, fazer novos amigos, observar a linda paisagem, tomar banho de mar em Ipanema, passear no calçadão de Copacabana, assistir filmes em Botafogoe, no domingo, fechando a semana com chave de ouro, ir ao futuro Maracanã ver o mengão ganhar e assim, minha vida mais feliz, ficar!
Flávio Rezende é escritor, jornalista e ativista social em Natal.
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