O nível do policial
Vou tratar hoje de dois assuntos controversos nas letras. A questão do
gênero ou da tipologia da literatura, que é bastante controversa. Grandes obras
normalmente não se conformam às regras do gênero; e muitos críticos literários
sequer reconhecem a existência desse conceito (de gênero da literatura). Eu já
acho que essa classificação é possível. Reconheço que uma das minhas
literaturas preferidas, a literatura policial ou detetivesca, como literatura
de massa, é um gênero bem definido. E aqui eu chego à segunda controvérsia, na
qual me deterei amiúde: a literatura de massa, popular, como a dos romances
policiais, pode ser uma “alta” literatura?
Houve um tempo em que a divisão entre “alta” e “baixa” literatura era
visível ou ao menos reconhecida/propagada pelos entendidos do assunto. Como
registra Miklós Szabolcsi (em “Literatura universal do século XX: principais
correntes”, Editora Universidade de Brasília, 1990), é “possível traçar uma
linha divisória entre as duas espécies de literatura, com base em diversos
pontos de vista, sejam os da sociologia da literatura ou da estética, sejam os
referentes às diferenças de função. O comum mesmo é citar, a título de
fundamentação, as narrativas reiterativas, de produção fácil e compostas por
módulos já prontos, que têm o poder de emocionar e horrorizar com facilidade e
são caracterizadas pela trivialidade do texto. Pode acrescentar-se, no entanto,
a possibilidade de recepção rápida, a compreensão sem dificuldades e, finalmente,
determinados procedimentos ligados à difusão e à produção. Mas são critérios
incertos e discutíveis. (...) O fato é que as pegadas das obras arroladas nesse
gênero podem ser acompanhadas a partir do século XVIII. A evidente divisão da
literatura ‘alta’ e ‘baixa’ ou ‘trivial’ consolida-se no final do século XIX,
simultaneamente com o fato que é sua causa: a ‘alta’ literatura vai se tornando
excludente, em face das dificuldades que oferece para a compreensão”.
Todavia, sobretudo a partir do começo do século XX, os territórios da
“alta” e da “baixa” literatura se expandiram causando uma mistura entre os seus
conjuntos. Como explica Szabolcsi, “de um lado, porque a vanguarda destrói os
limites estabelecidos entre a arte ‘elevada’ (de elite) e a ‘inferior’
(popular), de outro, porque, em função de causas técnicas e comerciais, cresce
o número de obras culturais modernas que, empregando as conquistas da
literatura ‘superior’ e assimilando-lhe a cosmovisão e as técnicas, passam a
prometer leitura rápida e leve, diversão e esquecimento. O best seller, o êxito
de livraria, não é simplesmente uma leitura soporífera e dissuasiva.
Frequentemente, representa correntes formativas e excitantes, que conquistam
grande parcela de leitores-consumidores”. Já tratei até desse tema e citei
Graham Greene, Morris West e John Le Carré, escrevendo aventuras, thrillers,
policiais ou romances de espionagem, como perfeitos casos de best-sellers que
realmente escreviam bem.
O que dizer da qualidade dos precursores do romance policial? De Edgar
Allan Poe, por exemplo, “com sua reconstrução intelectual dos crimes”? Na
verdade, depois de outros precursores do século XIX, como Émile Gaboriau e
Maurice Leblanc, a leitura do policial assiste “ao surgimento de clássicos como
Conan Doyle e Edgar Wallace e, a partir dos anos 30, com Agatha Christie e
Georges Simenon. Tornam-se parte integrante da literatura, em face das
exigências de um amplo círculo de leitores, que deseja a sobrevivência do
romantismo dos bandidos e mostra-se ávido da investigação e das emoções da
adivinhação dos enigmas. Tanto é verdade que, a seguir, instalam-se
profundamente na estrutura literária, a ponto de obras ‘elevadas’ passarem a
fazer uso dos recursos e das máscaras do romance policial. Primeiro, com G.K.
Chesterton; depois, com Grahan Greene, Friedrich Dürrenmatt, Max Frisch e o
nouveau roman francês, a ponto de diluir, aqui também, as fronteiras entre os
dois estilos”. E podemos citar outras referências do século XX, como Dashiel
Hammett e Raymand Chandler, suprassumos do policial noir, ou Erle Stanley
Gardner, que nos dá o tipo jurídico do advogado-detetive, com o seu Perry
Mason. E por aí vai.
Na verdade, para mim, não existe uma barreira intransponível à
literatura de massas, em especial à literatura policial/detetivesca, ao país da
“alta” literatura. Desconfio de Tzvetan Todorov quando afirma (em “Poética da
Prosa”, Martins Fontes, 2003): “quem quiser ‘embelezar’ o romance policial, faz
‘literatura’ e não romance policial”. Acredito que faz os dois. E dou como
exemplo definitivo Umberto Eco. Alguém vai me dizer que “O nome da rosa” (1980)
não é altíssima literatura detetivesca?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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