quarta-feira, 23 de março de 2022

 

Qual é o seu Deus?

Padre João Medeiros Filho

Não raro, escutam-se pessoas de todos os níveis socioeconômicos e culturais, afirmando: “Sou um ateu. Não creio em nada.” No entanto, cabe perguntar: em qual Deus não acreditam? À luz do Evangelho, é difícil crer em um deus cultuado em certos parlamentos, tribunais e órgãos públicos. Também é inaceitável uma divindade venerada pelos que praticam a injustiça e a exploração. É hipocrisia curvar-se diante de uma deidade imposta pelos insensíveis aos sofridos, injustiçados e incompreendidos. Enfim, é insensato ajoelhar-se ante um nume incensado por sedentos de ostentação, luxo e pompas. Somos discípulos de Jesus Cristo que, embora sendo profundamente fiel à crença e à espiritualidade judaica, combateu a forma de religião do Templo de Jerusalém, denunciando como hipócritas os chefes religiosos de sua época. É incabível prestar culto a um ente que se manifesta desumano na práxis daqueles que ignoram a solidariedade e a fraternidade. Tampouco sabem ouvir o grito dos oprimidos. Não é correto reverenciar uma divindade refém da intransigência e intolerância de alguns. Não é digno de fé um deus adorado pelos vaidosos, celebrado em liturgias vazias de mística, reluzentes de ouropéis e ritos primorosos, mas distantes da cotidiana dor dos irmãos.

Num mundo, no qual governantes se dizem cristãos, porém mostram-se sectários, discriminatórios, menos solidários que os não crentes, urge propor e pregar outra forma de testemunhar Deus. Em 2012, pouco antes de sua morte, Dom Carlos Maria Martini, exegeta e teólogo, cardeal arcebispo emérito de Milão, afirmava que muitos fiéis temem as transformações. Lembrava amiúde aos seus diocesanos: “Deus não tem medo de mudanças. Ele gosta de novidades, pois o Evangelho é a Boa Nova.” Aliás, o eminente purpurado chocou alguns de seus colegas, quando proferiu uma brilhante conferência intitulada: “o ateu que existe em nós.” Há pouco tempo, aquele eclesiástico teve publicado no Brasil um livro escrito em parceria com Umberto Eco, intitulado: “Em que creem os que não creem?” Trata-se de uma coletânea de artigos que ambos publicaram em revistas italianas. O professor Eco representou um descrente dialogando com um crédulo. Não resta dúvida de que Martini se manteve dentro dos limites da ortodoxia cristã. Diverge de alguns teólogos, quando estes sustentam a impossibilidade de uma ética sem vínculos religiosos. Em resposta a eles, Dom Carlos ensinava que todos são filhos do Eterno e Misericordioso e ninguém tem a exclusividade do Sagrado e Divino, como muitos pensam e ensinam. Cada ser humano é plasmado à imagem do Onipotente e carrega dentro de si os traços do Sobrenatural e Infinito.

Em 2014, para o encerramento da primeira fase do sínodo dos bispos, foram convidados ao Vaticano líderes religiosos e leigos de vários credos e nacionalidades. Eles deviam falar de suas lutas pacíficas por um mundo mais justo e fraterno. Praza aos céus que muitos fiéis – membros da hierarquia ou não – ávidos de documentos moralizantes, disciplinares e ritualísticos sejam menos críticos ou mais indulgentes e sigam o exemplo daqueles que se dedicam sem subterfúgios em prol do bem-estar da humanidade. 

Todas as tradições espirituais têm como meta construir a morada divina no mais profundo do ser humano, como a primeira semente para transformar as estruturas do mundo. Todavia, enquanto a religião predominar em seus aspectos superficiais e não mudar profundamente o coração de cada pessoa, não atingirá a sua meta. O projeto divino consiste na construção de um mundo renovado na base da justiça e da paz, do diálogo e respeito ao próximo e à natureza. Os cristãos devem dar testemunho desse projeto, começando por eles mesmos a trilhar o caminho do amor, da fraternidade e partilha. Simone Weill, mística e pensadora francesa do século passado, afirmava em “Attente de Dieu” (Espera de Deus): “Conheço quem é de Deus, não quando me fala Dele, mas pelo seu modo de ser solidário e amoroso com os outros.” Não se deve esquecer as palavras do Mestre, citando o profeta Isaías: “Este povo me honra com os seus lábios, mas seu coração está longe de mim. Em vão, me prestam culto.” (Mt 15, 8-9; cf. Is 29, 13).

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