Qual é o seu Deus?
Padre João Medeiros Filho
Não raro, escutam-se pessoas de
todos os níveis socioeconômicos e culturais, afirmando: “Sou um ateu. Não creio em nada.” No entanto, cabe perguntar: em
qual Deus não acreditam? À luz do Evangelho, é difícil crer em um deus cultuado
em certos parlamentos, tribunais e órgãos públicos. Também é inaceitável uma
divindade venerada pelos que praticam a injustiça e a exploração. É hipocrisia
curvar-se diante de uma deidade imposta pelos insensíveis aos sofridos, injustiçados
e incompreendidos. Enfim, é insensato ajoelhar-se ante um nume incensado por
sedentos de ostentação, luxo e pompas. Somos discípulos de Jesus Cristo que,
embora sendo profundamente fiel à crença e à espiritualidade judaica, combateu
a forma de religião do Templo de Jerusalém, denunciando como hipócritas os
chefes religiosos de sua época. É incabível prestar culto a um ente que se
manifesta desumano na práxis daqueles que ignoram a solidariedade e a
fraternidade. Tampouco sabem ouvir o grito dos oprimidos. Não é correto
reverenciar uma divindade refém da intransigência e intolerância de alguns. Não
é digno de fé um deus adorado pelos vaidosos, celebrado em liturgias vazias de
mística, reluzentes de ouropéis e ritos primorosos, mas distantes da cotidiana
dor dos irmãos.
Num mundo, no qual governantes se
dizem cristãos, porém mostram-se sectários, discriminatórios, menos solidários
que os não crentes, urge propor e pregar outra forma de testemunhar Deus. Em
2012, pouco antes de sua morte, Dom Carlos Maria Martini, exegeta e teólogo, cardeal
arcebispo emérito de Milão, afirmava que muitos fiéis temem as transformações.
Lembrava amiúde aos seus diocesanos: “Deus
não tem medo de mudanças. Ele gosta de novidades, pois o Evangelho é a Boa
Nova.” Aliás, o eminente purpurado chocou alguns de seus colegas, quando
proferiu uma brilhante conferência intitulada: “o ateu que existe em nós.” Há
pouco tempo, aquele eclesiástico teve publicado no Brasil um livro escrito em parceria com Umberto
Eco, intitulado: “Em que creem os que não
creem?” Trata-se de uma coletânea de artigos que ambos publicaram em
revistas italianas. O professor Eco representou um descrente dialogando com um
crédulo. Não resta dúvida de que Martini se manteve dentro dos limites da
ortodoxia cristã. Diverge de alguns teólogos, quando estes sustentam a
impossibilidade de uma ética sem vínculos religiosos. Em resposta a eles, Dom
Carlos ensinava que todos são filhos do Eterno e Misericordioso e ninguém tem a
exclusividade do Sagrado e Divino, como muitos pensam e ensinam. Cada ser
humano é plasmado à imagem do Onipotente e carrega dentro de si os traços do Sobrenatural
e Infinito.
Em 2014, para o encerramento da
primeira fase do sínodo dos bispos, foram convidados ao Vaticano líderes
religiosos e leigos de vários credos e nacionalidades. Eles deviam falar de
suas lutas pacíficas por um mundo mais justo e fraterno. Praza aos céus que muitos
fiéis – membros da hierarquia ou não – ávidos de documentos moralizantes,
disciplinares e ritualísticos sejam menos críticos ou mais indulgentes e sigam
o exemplo daqueles que se dedicam sem subterfúgios em prol do bem-estar da
humanidade.
Todas as tradições espirituais têm
como meta construir a morada divina no mais profundo do ser humano, como a
primeira semente para transformar as estruturas do mundo. Todavia, enquanto a
religião predominar em seus aspectos superficiais e não mudar profundamente o
coração de cada pessoa, não atingirá a sua meta. O projeto divino consiste na
construção de um mundo renovado na base da justiça e da paz, do diálogo e
respeito ao próximo e à natureza. Os cristãos devem dar testemunho desse projeto,
começando por eles mesmos a trilhar o caminho do amor, da fraternidade e
partilha. Simone Weill, mística e pensadora francesa do século passado,
afirmava em “Attente de Dieu” (Espera de Deus): “Conheço quem é de Deus, não quando me fala Dele, mas pelo seu modo de
ser solidário e amoroso com os outros.” Não se deve esquecer as palavras do
Mestre, citando o profeta Isaías: “Este
povo me honra com os seus lábios, mas seu coração está longe de mim. Em vão, me prestam culto.” (Mt 15, 8-9;
cf. Is 29, 13).
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