Setembro, mês da Bíblia
Padre João Medeiros Filho
A Igreja Católica dedica o nono mês do ano à Sagrada Escritura, em homenagem a São Jerônimo (que a traduziu para o latim) e cuja festa é celebrada no dia 30 de setembro. A Bíblia é simultaneamente palavra divina e literatura. Entretanto, apresenta peculiaridades que a distinguem de outras obras literárias. Não raro, verificam-se concepções distorcidas dos textos sagrados. Alguns os leem apenas literalmente ou de modo denotativo. Nela, Deus fala ao ser humano. Mas, isto não significa que tudo é inquestionável. Ela apresenta também um aspecto metafórico. É preciso saber até onde vão a inerrância e a inspiração bíblicas. Estas não se prendem a estilos, formas literárias, costumes e dados culturais da época dos hagiógrafos. Tais elementos constituem o contributo humano. Dir-se-ia que a Sagrada Escritura é uma obra em coautoria. O homem colabora na forma de narrar e escrever. E ali Deus revela à humanidade sua mensagem divina, universal e perene.
A literatura tem uma força própria de expressar a realidade, rica de significados e simbolismos. A poesia, em especial, consegue fazê-la de um jeito que a linguagem habitual não realiza. A Bíblia é como um grande poema, todo marcado de inspiração. Num texto poético há muito mais daquilo que está escrito literalmente. O teólogo suíço Kurt Marti afirmava que “Deus muitas vezes mantém alguns poetas à sua disposição, para que o falar sobre Ele preserve a Sua inefável riqueza e beleza, que os sacerdotes e teólogos não conseguem exprimir.” A poesia chama a atenção para o fato de que nem sempre um escrito reveste-se da palavra perfeita.
Com a introdução dos métodos históricos e críticos (em especial, a “formesgeschichte”, teoria das formas), tem-se uma abordagem mais realista da Escritura, enquanto produção literária, superando leituras superficiais e inexatas. Sem perder seu caráter sagrado, vai se revelando, paulatinamente, tecida por mãos humanas. A partir de novas luzes das ciências, identificaram-se nos textos bíblicos vários gêneros literários neles utilizados. Descobriram-se tradições religiosas subjacentes, métodos com os quais os autores trabalharam ao escrevê-los, estruturas estilísticas e narrativas. Assim, formam-se as abordagens escriturísticas, sob as mais diversas perspectivas: teológica, ética, literária, antropológica, social, histórica, cultural etc. São enfoques que se complementam, ajudando o leitor a aprofundar-se nos textos sagrados, captando melhor a mensagem, como Palavra divina.
É preciso possuir certos conhecimentos para adentrar no mundo dos escritos bíblicos e descobrir a mensagem salvífica. Esta encontra-se também por trás das palavras, revestida de linguagem humana e carga cultural. Isto permite distinguir entre aquilo que é denominado pelos exegetas e hermeneutas: o denotativo e o conotativo. Um exemplo dessa diferença poderia ser a passagem do Levítico (cf. Lv 11,7-8). Ali, proíbe-se o consumo de carne suína ao povo da Antiga Aliança. Tratava-se, dentro do contexto daquele tempo, de uma proteção à saúde. Numa linguagem atualizada não seria recomendado o consumo de alimentos gordurosos, contaminados por agrotóxicos, impregnados de conservantes e corantes, danosos ao ser humano. A proibição religiosa de ingerir, à época, carne de porco (denotativo) traz uma mensagem: evitar alimentos nocivos à vida, dom precioso de Deus (conotativo). Assim, a Bíblia em seu aspecto literário veste-se da roupagem do que pretende transmitir. A mensagem está naquilo que é conotativo. Ali, residem a inerrância e inspiração bíblicas, ensina-nos a Igreja. A esta cabe a verdadeira exegese ou hermenêutica do Antigo e Novo Testamento.
É importante saber que na Bíblia Deus se faz presente da primeira à última linha, mesmo quando não referido explicitamente. Cada livro sagrado possui estreita relação com o contexto de origem. Apesar de possuir objetivos e destinatários definidos, apresenta uma mensagem sempre atual. A Sagrada Escritura propõe modos de proceder individuais e sociais (ética), uma sabedoria que decorre da fé no Deus da vida. Este opõe-se a todo tipo de injustiça e degradação do ser humano, “sua imagem e semelhança.” (Gn 1, 26). Portanto, a Bíblia é uma literatura ungida, Palavra de Deus, revelada aos homens. “Tua palavra é lâmpada para os meus passos e luz para os meus caminhos.” (Sl 119/118, 105).
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