Romance de reeducação
Hermann Hesse (1877-1962) nasceu no sul da Alemanha. Era filho de protestantes. Assim foi rigidamente educado. Deveria ter sido pastor pietista. Rebelou-se. Viajou para longe. Foi morar na Suíça, onde se naturalizou. Foi livreiro. Sofreu dos “nervos”. Casou três vezes. Escreveu poesia, romances, ensaios e por aí vai. Era pacifista. Durante a 2ª Grande Guerra, acolheu refugiados do regime nazista. Sua obra, claro, foi interditada na Alemanha de então. Em um só ano, 1946, arrebatou tanto o Nobel de Literatura (muito por sua poesia) como o Prêmio Goethe. Foi a consagração. Faleceu, com 85 anos, acredito bem vividos.
De Hesse, li, encarrilhados, “Demian” (1919), “Sidarta” (1922) e “O lobo das estepes” (1927). O ano era 1995, segundo as anotações na edição que possuo de “Demian”, da Editora Civilização, de 1969. Não consegui ler “O jogo das contas de vidro” (1943), que é considerado, por muitos, a sua opus magnum. Abandonei-o. Talvez ainda não estivesse preparado para tanto.
“Sidarta”, “O lobo das estepes” e “O jogo das contas de vidro” são títulos fundamentais na obra de Hesse. Mas o seu livro de maior repercussão é “Demian”. Como registra Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em “A história concisa da literatura alemã” (Faro Editorial, 2013), ele “foi durante anos o breviário da juventude alemã. Teve repercussão profunda”. Teve imensa repercussão em mim também.
Para entender “Demian” é necessário conhecer a vida do seu autor, marcada por rebeliões e fugas. E a primeira delas, ainda em casa, foi contra a educação protestante imposta pelos pais, que haviam sido até missionários na Índia. Em “Demian”, Hesse poetiza essa rebelião.
Emil Sinclair, o narrador da estória, é um menino criado em uma família de classe média, num ambiente de luz e ilusão. Sua existência é uma luta entre dois mundos, um ilusório (representado pela mãe) e o mundo real. A amizade com Demian, seu aliciante colega de classe, estimula-o a revoltar-se contra o mundo das aparências e a buscar, em si mesmo, perigosamente, a própria identidade. De fato, como explica o tradutor Ivo Barroso (1929-), na minha edição do romance, é fácil “perceber quanto as figuras de Sinclair, Demian e Pistórius [outro mentor de Sinclair] encerram do próprio Hesse, não passando de sínteses ou projeções de suas vivências”. “Demian”, aliás, é o primeiro romance de Hesse no caminho que o conduz a “O Lobo da Estepe”, da qual o Sidarta é uma etapa intermediária. E é possível dizer que o atormentado Harry Haller, “o lobo da estepe”, é o Emil Sinclair, de Demian, na sua maturidade. Cada uma de suas personagens é um Hesse diferente, aquele que ele foi ou aquele que ele gostaria de ter sido.
Hesse foi ainda um dos precursores do uso, na literatura, da psicanálise, das teorias de Freud (1856-1939) e de Jung (1875-1961), já emergentes à época, mas ainda não badaladas nos EUA e mundo afora. E o mais importante: acredito haver Hesse com isso influenciado – e posso mesmo dizer reeducado – muitos dos seus leitores. Como diz Ivo Barroso, “ainda mais que uma história ou romance de educação, [Damian] é o relato de um processo de deseducação, ou preferindo-se, de reeducação, de laborioso apagar das pegadas que o puritanismo educacional deixa impressas na alma adolescente: a timidez, a humildade, o alheamento – armas obsoletas contra a hostilidade do mundo real – e que conduzem, mais tarde, inapelavelmente à solidão e à inadaptabilidade, à surda revolta e ao amargo constrangimento”. Tirar o entulho e replantar.
De minha parte, o que reapreendi? Entre outras coisas, a procurar na introspecção, bem mais que na religião, as respostas às muitas perguntas que ainda hoje busco. Hesse, assim, foi professor de um individualismo em que se busca a própria personalidade. Acho que chamamos isso de autoconhecimento. Atentei para o valor da independência, claro. Mas enxerguei que ela poderia levar tanto ao bem como ao mal. Entendi também que as pessoas não são inteiramente boas ou inteiramente más. E, à semelhança do que ensina Rudyard Kipling (1865-1936), no seu poema “If”, aprendi “de amigos, quer bons, quer maus, me defender”.
Pelo menos assim acredito. E a Hesse e a Demian sou muito grato.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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