CINCO LIÇÕES SOBRE A VIDA E O
DIREITO
Patrono da turma de 2014 da faculdade de Direito da UERJ -
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o ministro Luís Roberto Barroso, do
STF, proferiu emocionante discurso com reflexões essenciais relacionadas à vida
e ao Direito.
Confira a íntegra do texto.
A vida e o Direito:
breve manual de instruções
É lugar comum dizer-se que a vida vem sem manual de instruções.
Porém, não resisti à tentação – mais que isso, à ilimitada pretensão – de sanar
essa omissão. Relevem a insensatez. Ela é fruto do meu afeto. Por certo, ninguém
vive a vida dos outros. Cada um descobre, ao longo do caminho, as suas próprias
verdades. Vai aqui, ainda assim, no curto espaço de tempo que me impus, um guia
breve com ideias essenciais ligadas à vida e ao Direito.
A regra nº
1
No nosso primeiro dia de aula eu lhes narrei o multicitado "caso
do arremesso de anão". Como se lembrarão, em uma localidade próxima a Paris, uma
casa noturna realizava um evento, um torneio no qual os participantes procuravam
atirar um anão, um deficiente físico de baixa altura, à maior distância
possível. O vencedor levava o grande prêmio da noite. Compreensivelmente
horrorizado com a prática, o Prefeito Municipal interditou a
atividade.
Após recursos, idas e vindas, o Conselho de Estado francês
confirmou a proibição. Na ocasião, dizia-lhes eu, o Conselho afirmou que se
aquele pobre homem abria mão de sua dignidade humana, deixando-se arremessar
como se fora um objeto e não um sujeito de direitos, cabia ao Estado intervir
para restabelecer a sua dignidade perdida. Em meio ao assentimento geral, eu
observava que a história não havia terminado ainda.
E em seguida, contava que o anão recorrera em todas as instâncias
possíveis, chegando até mesmo à Comissão de Direitos Humanos da ONU, procurando
reverter a proibição. Sustentava ele que não se sentia – o trocadilho é
inevitável – diminuído com aquela prática. Pelo contrário.
Pela primeira vez em toda a sua vida ele se sentia realizado.
Tinha um emprego, amigos, ganhava salário e gorjetas, e nunca fora tão feliz. A
decisão do Conselho o obrigava a voltar para o mundo onde vivia esquecido e
invisível.
Após eu narrar a segunda parte da história, todos nos sentíamos
divididos em relação a qual seria a solução correta. E ali, naquele primeiro
encontro, nós estabelecemos que para quem escolhia viver no mundo do Direito
esta era a regra nº 1:
Nunca forme uma
opinião sem antes ouvir os dois lados.
A regra nº
2
Nós vivemos em um mundo complexo e plural. Como bem ilustra o
nosso exemplo anterior, cada um é feliz à sua maneira. A vida pode ser vista de
múltiplos pontos de observação. Narro-lhes uma história que li recentemente e
que considero uma boa alegoria. Dois amigos estão sentados em um bar no Alaska,
tomando uma cerveja. Começam, como previsível, conversando sobre mulheres.
Depois falam de esportes diversos. E na medida em que a cerveja acumulava,
passam a falar sobre religião. Um deles é ateu. O outro é um homem
religioso.
Passam a discutir sobre a existência de Deus. O ateu fala: "Não é
que eu nunca tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemente. Eu
havia me perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a congelar,
percebi que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto: Deus, se
você existe, me tire dessa situação, salve a minha vida".
Diante de tal depoimento, o religioso disse: “Bom, mas você foi
salvo, você está aqui, deveria ter passado a acreditar". E o ateu responde:
"Nada disso! Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é que vinha passando um
casal de esquimós. Eles me resgataram, me aqueceram e me mostraram o caminho de
volta. É a eles que eu devo a minha vida".
Note-se que não há aqui qualquer dúvida quanto aos fatos, apenas
sobre como interpretá-los.
Quem está certo? Onde está a verdade? Na frase feliz da escritora
Anais Nin, “nós não vemos as coisas como elas são; nós as vemos como nós somos”.
Para viver uma vida boa, uma vida completa, cada um deve procurar o bem, o
correto e o justo. Mas sem presunção ou arrogância. Sem desconsiderar o outro.
Aqui a nossa regra
nº 2: a verdade não tem dono.
A regra nº
3
Uma vez, um sultão poderoso sonhou que havia perdido todos os
dentes. Intrigado, mandou chamar um sábio que o ajudasse a interpretar o sonho.
O sábio fez um ar sombrio e exclamou: "Uma desgraça, Majestade. Os dentes
perdidos significam que Vossa Alteza irá assistir a morte de todos os seus
parentes". Extremamente contrariado, o Sultão mandou aplicar cem chibatadas no
sábio agourento.
Em seguida, mandou chamar outro sábio. Este, ao ouvir o sonho,
falou com voz excitada: "Vejo uma grande felicidade, Majestade. Vossa Alteza irá
viver mais do que todos os seus parentes". Exultante com a revelação, o Sultão
mandou pagar ao sábio cem moedas de ouro. Um cortesão que assistira a ambas as
cenas vira-se para o segundo sábio e lhe diz: "Não consigo entender. Sua
resposta foi exatamente igual à do primeiro sábio. O outro foi castigado e você
foi premiado". Ao que o segundo sábio respondeu: "a diferença não está no que eu
falei, mas em como falei".
Pois assim é. Na vida, não basta ter razão: é preciso saber levar.
É possível embrulhar os nossos pontos de vista em papel áspero e com espinhos,
revelando indiferença aos sentimentos alheios. Mas, sem qualquer sacrifício do
seu conteúdo, é possível, também, embalá-los em papel suave, que revele
consideração pelo outro.
Esta a nossa regra
nº 3: o modo como se fala faz toda a diferença.
A regra nº
4
Nós vivemos tempos difíceis. É impossível esconder a sensação de
que há espaços na vida brasileira em que o mal venceu. Domínios em que não
parecem fazer sentido noções como patriotismo, idealismo ou respeito ao próximo.
Mas a história da humanidade demonstra o contrário. O processo civilizatório
segue o seu curso como um rio subterrâneo, impulsionado pela energia positiva
que vem desde o início dos tempos. Uma história que nos trouxe de um mundo
primitivo de aspereza e brutalidade à era dos direitos humanos. É o bem que
vence no final. Se não acabou bem, é porque não chegou ao fim.
O fato de acontecerem tantas coisas tristes e erradas não nos
dispensa de procurarmos agir com integridade e correção. Estes não são valores
instrumentais, mas fins em si mesmos. São requisitos para uma vida boa.
Portanto, independentemente do que estiver acontecendo à sua volta, faça o
melhor papel que puder. A virtude não precisa de plateia, de aplauso ou de
reconhecimento. A virtude é a sua própria recompensa.
Eis a nossa regra nº
4: seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver
olhando.
A regra nº
5
Em uma de suas fábulas, Esopo conta a história de um galo que após
intensa disputa derrotou o oponente, tornando-se o rei do galinheiro. O galo
vencido, dignamente, preparou-se para deixar o terreiro. O vencedor, vaidoso,
subiu ao ponto mais alto do telhado e pôs-se a cantar aos ventos a sua vitória.
Chamou a atenção de uma águia, que o arrebatou em voo rasante, pondo fim ao seu
triunfo e à sua vida. E, assim, o galo aparentemente vencido reinou
discretamente, por muito tempo.
A moral dessa história, como próprio das fábulas, é bem simples:
devemos ser altivos na derrota e humildes na vitória. Humildade não significa
pedir licença para viver a própria vida, mas tão somente abster-se de se exibir
e de ostentar.
Ao lado da humildade, há outra virtude que eleva o espírito e traz
felicidade: é a gratidão. Mas, atenção: a gratidão é presa fácil do tempo; tem
memória curta (Benjamin Constant) e envelhece depressa (Aristóteles). Portanto,
nessa matéria, sejam rápidos no gatilho. Agradecer, de coração, enriquece quem
oferece e quem recebe.
Em quase todos os meus discursos de formatura, desde que a vida
começou a me oferecer este presente, eu incluo a passagem que se segue, e que é
pertinente aqui:
As coisas não caem do céu. É preciso ir buscá-las. Correr atrás,
mergulhar fundo, voar alto. Muitas vezes, será necessário voltar ao ponto de
partida e começar tudo de novo. As coisas, eu repito, não caem do
céu.
Mas quando, após haverem empenhado cérebro, nervos e coração,
chegarem à vitória final, saboreiem o sucesso gota a gota. Sem medo, sem culpa e
em paz. É uma delícia. Sem esquecer, no entanto, que ninguém é bom demais. Que
ninguém é bom sozinho. E que, no fundo no fundo, por paradoxal que pareça, as
coisas caem mesmo é do céu, e é preciso agradecer.
Esta a nossa regra
nº 5: ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso
agradecer.
Conclusão
Eis, então, as cláusulas do nosso pacto, nosso pequeno manual de
instruções:
1. Nunca forme uma
opinião sem ouvir os dois lados;
2. A verdade não tem
dono;
3. O modo como se
fala faz toda a diferença;
4. Seja bom e
correto mesmo quando ninguém estiver olhando;
5. Ninguém é bom
demais, ninguém é bom sozinho, e é preciso agradecer.
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