O PRAGMATISMO DAS EMOÇÕES
Engenheiro e professor de matemática, o meu amigo paulista era frio como uma montanha de gelo da Antártica. No curso de turismo, tínhamos uma aluna que era aeromoça. Alta, cabelos castanhos, olhos azuis e corpo perfeito; era uma máquina, um avião, um monumento, uma boazuda – como se dizia antigamente. Como vivia viajando, também vivia apresentando atestado médico na secretaria da universidade, para abonar suas faltas. O abono era automático, na forma da Lei. Desconfiado, o meu amigo consegui o plano de escala da empresa aérea e exigiu que a secretaria colocasse faltas nos dias que a aluna estava ausente a trabalho. Em outra oportunidade, quando eu estava presidindo uma comissão de greves de professores da universidade (particular, diga-se de passagem), ele foi o único a não aderir, dizendo que, matematicamente, um professor a mais ou a menos nada representaria num universo de 150. Embora concordando conosco, nada adiantou nossos argumentos. Foi para a faculdade, assinou o ponto e só não deu aula porque não havia alunos.
Embora na prática ele tenha sido um “fura greve”, teoricamente ele estava a favor da greve. Ele era assim mesmo. Emoção não fazia parte dos seus sentimentos. Só nos restava entende-lo. Certo dia, antes do início das aulas, estávamos na sala dos professores discutindo política quando ele expressou sua opinião sobre o assunto: em política só fazia uma coisa, votar. Discutir não levaria a nada e um voto só também não. Somente votava porque era obrigado por Lei. Todos nós caímos em cima dele, todos falando ao mesmo tempo. Não adiantou nada. Sua resposta foi que emoção não resolve problemas. Dirigindo-se a mim, disse: “sua origem nordestina diz tudo, pois o nordestino é um emotivo por excelência”. Ai o professor Renato entrou na conversa: “Sou paulista, paulistano, também engenheiro e professor de matemática e emotivamente fanático torcedor do São Paulo. E ai, qual a sua explicação?”. “Contaminação, pelo convívio” – foi a resposta do paulista pragmático.
Um belo dia, ele que nunca faltava e até sempre chegava bem antes do horário, faltou às aulas. Todo mundo teve o mesmo pensamento: acidente, pois ele não tinha avisado nada com antecedência, como seria do seu feitio. Depois soubemos a causa. O nosso amigo tinha estado em uma cidade da área metropolitana da capital paulista, fazendo um trabalho. Quando regressa, se deparou com um tremendo engarrafamento na estrada, provocado por um protesto de MST. Esperou a policia chegar, e nada. Apelou para o celular, para avisar a secretaria da universidade, e não havia linha. Argumentou com os manifestantes, e não conseguiu nada. Então deixou o pragmatismo de lado e partiu para a discussão direta, se inflamou e terminou levando uns pescoções dos “sem terras”, mas com muitas emoções. Tudo isso foi ele mesmo que nos contou no dia seguinte… com um olho roxo, lembrança do entrevero da véspera.
Muito embora ainda mantivesse uma certa fleuma de paulista quatrocentão, nunca mais foi o mesmo. Deixou de questionar os atestados da aeromoça, no ano seguinte queria participar da greve, se tivesse havido e na sala dos professores – não era sempre, mas de vez em quando – passou a discutir política. Entretanto, o máximo do máximo foi quando ele pediu ao Renato para ir com ele ao Morumbi, assistiu a um jogo do São Paulo.
Os seguidos acidentes com aviões e até com helicópteros – no mundo e por aqui mesmo – fizeram-me lembrar do meu colega ex-pragmático. Os pragmáticos pensariam que, ninguém, em sã consciência, deixaria que as coisas chegassem aonde chegaram. Porém nós, os emotivos, já tínhamos como anunciadas as tragédias que estão acontecendo. A sequência de irresponsabilidade e os constantes sinais de incompetência só poderiam resultar em consequências graves. Dizer que a culpa é da localização de aeroportos e outras que tais é fugir do real, atribuir ao intenso tráfego aéreo não é balela (aviões chegam para pousar no aeroporto de São Francisco a uma taxa de 1 a cada 45 segundos) ou pode ser; eu não sei. Mas a maioria das vezes é mesmo de irresponsabilidade e incompetência.
Não adiante emotivamente bazofiar, dar murro na mesa, fazer lamentações públicas, criar comissões de estudos, exigir explicações, dar prazos para solução dos problemas no céu e na terra, se ninguém faz nada de concreto. Se após os acidentes os governos anunciam providências a tomar, por que não as tomam antes que pessoas morram?
O pragmatismo às vezes nos leva ao engano, as emoções geralmente são enganadoras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário