As duas portas do SUS
Octavio Ferraz e Daniel Wang (*)
A
judicialização da saúde está criando um SUS de duas portas: uma para
aqueles que vão ao Judiciário e outra para o resto da população
A
vida não tem preço!, bradam os defensores da mais recente decisão da
Justiça brasileira obrigando o Estado a custear tratamento de saúde no
exterior. O caso, como todos os outros nesta seara, é trágico.
Um
bebê de cinco meses cuja única esperança, ainda que tênue, é uma
operação de altíssimo custo. Poucos hospitais brasileiros têm condições
de realizar o complexo procedimento (transplante multivisceral), ainda
experimental, mas nenhum deles entende que o paciente se enquadre nos
critérios exigidos no Brasil para que a operação tenha mínimas chances
de sucesso. A última opção da família é levar o bebê aos Estados Unidos,
onde um cirurgião se dispõe a realizar o procedimento. O preço: R$ 2
milhões.
Para muitos, a
questão é simples. Como "a vida não tem preço" e a Constituição Federal
garante a saúde como um direito fundamental e um dever do Estado, o
governo deve gastar o que for necessário para tentar salvá-la.
Negando-se a cumprir esta obrigação, cabe ao Judiciário forçá-lo,
salvando assim uma vida posta em risco pelo "negligente", "incompetente"
e "corrupto" Estado brasileiro. Seria ótimo se o problema fosse tão
simples assim.
De fato, a
vida não tem preço no sentido de um valor monetário de mercado. Não se
pode comprar ou vender uma vida. Mas o cuidado à saúde tem preço, e
muito alto. Médicos, enfermeiras e auxiliares têm salários. Remédios,
próteses, exames, cirurgias, hospitais, ambulâncias custam caro. Como o
presente caso demonstra, quando estão em questão novas tecnologias ou
tratamentos experimentais, esses custos podem aumentar exponencialmente.
O Estado brasileiro gasta
pouco com o sistema de saúde em comparação com outros países, mas nem
que dobrasse ou triplicasse seus gastos e acabasse da noite para o dia
com a corrupção e a ineficiência, poderia fornecer a toda a população o
melhor e mais moderno tratamento possível disponível. Nenhum país
poderia.
Nesse contexto de
custos altos e crescentes e de recursos limitados, o dever do Estado é
alocar os recursos disponíveis de forma equitativa à população. Essa
tarefa é sem dúvida das mais inglórias que existem, não apenas pela
tragicidade das escolhas, mas também pela escassez atual de critérios
claros, consensuais e objetivos para realizá-la. A judicialização da
saúde nos moldes em que vem sendo praticada no Brasil não resolve nem
ajuda a resolver esse complexo problema, muito pelo contrário. De acordo
com estimativa conservadora, foram gastos quase R$ 1 bilhão com
judicialização da saúde no ano passado. A estimativa é conservadora
porque não inclui, por falta de dados, o gasto dos municípios, de 17
Estados e do Distrito Federal. O dinheiro para o cumprimento das
decisões não sai do bolso do corrupto ou da redução da ineficiência, mas
do orçamento disponível para o cuidado de saúde de toda a população.
Não
se coloca em questão, evidentemente, o valor da vida e da saúde do bebê
ou de qualquer outro cidadão brasileiro que entre na Justiça para
pleitear tratamento médico. Mas esse mesmo valor, e os direitos
correspondentes, aplicam-se à vida e à saúde de toda a população. Negar
um tratamento não significa necessariamente ignorar o valor da vida e da
saúde do demandante, mas dar-lhe o mesmo valor que à vida e à saúde de
todos que também dependem do sistema.
A judicialização da saúde
no modelo brasileiro está criando um SUS de duas portas: uma para
aqueles que vão ao Judiciário, para quem "a vida não tem preço" e
conseguem assim acesso irrestrito aos recursos estatais para satisfazer
suas necessidades em saúde; outra para o resto da população, que,
inevitavelmente, tem acesso limitado, e mais limitado ainda pelo
redirecionamento de recursos que beneficia aqueles que entraram pela
outra porta.
O argumento daqueles que defendem incondicionalmente
a judicialização como simples proteção da vida deve portanto ser
adaptado para exprimir seu verdadeiro sentido: "A vida não tem preço,
mas a vida de alguns tem menos preço que a vida de outros".
(*) OCTAVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 42, é professor de direito na Universidade de Warwick (Reino Unido)
DANIEL WEI LIANG WANG,
30, faz pós-doutorado na London School of Economics and Political
Sciences (Escola de Economia e Ciência Política de Londres), onde
leciona direitos humanos.
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