A dor e a delícia de ser brasileiro
Por Alberto
Carlos Almeida |
O paciente é o Brasil. A terapia foi motivada pela proximidade da Copa
do Mundo. O país decidiu falar por meio de suas celebridades, que vão à mídia
para criticá-lo. Fizeram isso Ney Matogrosso, Paulo Coelho, Zico e Ronaldo. O
paciente chega angustiado à sessão de terapia e desembucha a falar sobre seus
mais profundos sentimentos existenciais. Nesse caso, nada pior em nossa
existência do que ser brasileiro. O sofrimento da alma é muito grande. O
paciente fica emocionado e chora ao afirmar que, por sermos brasileiros, somos
incapazes de organizar uma Copa no mesmo padrão da que fizeram Alemanha,
Estados Unidos e outras potências com as quais neuroticamente buscamos nos
comparar.
Segundo a classificação oficial das neuroses, há pelo menos seis tipos
distintos de transtornos, dentre os quais os bastante conhecidos transtorno de
ansiedade e transtorno obsessivo-compulsivo. Nosso paciente, porém, é criativo,
em tudo é diferente dos demais, é um caso raro, talvez único. Recentemente, ele
narrou como foi a inauguração do estádio do jogo de abertura da Copa. Em vez de
afirmar que não houve dificuldades de transporte, estacionamento e deslocamento
da torcida em um jogo para o qual todos os ingressos tinham sido vendidos, ele
disse que havia três placas de sinalização com nomes diferentes para o mesmo
local, considerou ter sido esta uma falha gravíssima e a aproveitou para cuspir
em sua própria imagem.
É paradigmático que Ney Matogrosso tenha expressado essa dor existencial
da alma, esse complexo de vira-latas rodriguiano, justamente quando se
encontrava em Portugal. Ora, justo Portugal, cujo maior legado para o mundo foi
ter criado o Brasil. Justo Portugal, que foi ultrapassado por sua criatura em
numerosas coisas, tais como PIB, complexidade da economia, dinamismo, vitórias
desportivas, produção científica. O entrevistador, em sessão de terapia, se
disse perplexo com suas declarações sobre quão inferior e cheio de defeitos era
o Brasil. Incrível que a sessão de análise tenha sido em Portugal, nosso
criador e por quem temos imenso respeito, mas que hoje não serve de exemplo
para nós em praticamente nada.
Não é mera coincidência que a sessão terapêutica protagonizada por Paulo
Coelho também tenha sido no exterior, desta vez na França, um país cujo sistema
político permite que uma mesma pessoa acumule os cargos de prefeito e deputado,
onde o presidente não pode ser processado e onde vão para o segundo turno não apenas
os dois candidatos mais votados, mas todos que tiverem acima de uma determinada
proporção de votos. Por isso, muitas vezes o eleito não tem mais do que 50% dos
votos.
Pois bem, Paulo Coelho deu uma entrevista para o "Le Journal du
Dimanche" e afirmou que o Brasil estava próximo de uma explosão social.
Talvez estivesse inspirado na Revolução Francesa e sua incapacidade de ter
abolido lá atrás o que viriam a ser os privilégios dos políticos de hoje na
França. Coelho chegou ao extremo de chamar de imbecil o maior artilheiro de
todas as Copas do Mundo, Ronaldo, por ele ter afirmado que Copa do Mundo não
era feita com hospitais, mas com estádios.
A proximidade da Copa faz milagres, quando se trata de mudança. Ronaldo
disse isso em 2011. Agora, a poucos dias da Copa, ele também foi para a sessão
de análise com o já conhecido transtorno de vira-latas. Ronaldo acabou de
afirmar que se sente envergonhado de seu país. Ainda bem que não deu o passo
seguinte e afirmou que se sente envergonhado de si próprio, pelo fato de ser
brasileiro - o pior de todos os transtornos da alma - e como tal ter mudado de
posição sobre a Copa em tão pouco tempo. Ronaldo disse algo bastante
emblemático: afirmou que estamos passando uma imagem ruim para fora do Brasil.
Se ele não fez como Ney Matogrosso e Paulo Coelho, falando a mídias
internacionais, compensou mostrando sua preocupação neurótica com o que os
outros pensam de nós.
Eis uma pergunta simples que o terapeuta faz ao paciente: que ideia o
brasileiro tem de si mesmo? Essa pergunta suscita outra questão para o
paciente: que ideia o brasileiro tem do inglês, do alemão, do americano? É
comum que a resposta seja dada sem que sejamos capazes de acreditar naquilo que
vemos, sem acreditar na evidência objetiva, que mostra o país caminhando para a
frente, ao seu modo, mas avançando. A evidência que revela instituições
políticas fortes, uma economia pujante e diversificada, um povo vibrante e uma
sociedade que tem defeitos, como qualquer outra sociedade, mas que tem
numerosas virtudes, dentre as quais uma intensa e alegre sociabilidade. O lorde
inglês não é assim, tampouco o kaiser alemão.
Nosso terapeuta vai adiante e pergunta ao paciente se o transtorno de
vira-latas não estaria correlacionado com algo mais, talvez com uma visão
negativa ou positiva deste ou daquele político, deste ou daquele governo. O
paciente se nega a responder, mas o terapeuta vai adiante e utiliza a hipnose.
Nesse estado de transe, o paciente admite que há alguma ligação, sim, entre o
que ele pensa do atual governo, entre o que ele pensa de Dilma, e como ele
avalia a Copa do Mundo. Não satisfeito, o terapeuta decide perguntar a todo o
país sobre sua visão de Copa do Mundo, e eis que os resultados são
surpreendentes.
Em primeiro lugar, o apoio (e crítica) à Copa do Mundo, considerando-se
um argumento positivo e outro negativo, é bem equilibrado: 49% consideram que a
Copa do Mundo é boa para o Brasil, porque traz mais investimentos e gera mais
empregos para a população, ao passo que 46% acham que a Copa do Mundo é ruim para
o Brasil, porque o dinheiro gasto com os estádios poderia ter sido usado para
saúde e educação. O país está dividido ao meio. O mais interessante foi o que a
hipnose descobriu: quanto melhor a avaliação do governo Dilma, mais o paciente
acha que a Copa é boa para o Brasil, e quanto pior a avaliação do governo
Dilma, mais o paciente considera que a Copa é ruim para o Brasil.
Dentre aqueles que consideram o governo Dilma ótimo, 74% acham que a
Copa é boa e vai gerar empregos. Essa proporção cai para 70% entre os que acham
o governo bom e vai caindo sucessivamente, até somente 24% entre os que
consideram o governo péssimo. O inverso acontece no julgamento negativo da
Copa: 72% dos que acham o governo Dilma péssimo afirmam que a Copa é ruim para
o Brasil, porque retira recursos de saúde e educação e os direciona para os
estádios. A proporção é de 66% para quem acha o governo ruim e somente 24% para
quem diz que o governo Dilma é ótimo.
Diante das evidências obtidas por meio da hipnose, o terapeuta acha que
os casos de Paulo Coelho e Ronaldo podem não ser somente complexo de
vira-latas, mas apenas uma mudança de suas visões acerca do governo Dilma. Como
ambos já deram no passado declarações favoráveis à Copa, pode ser que a recente
mudança de posição face ao mais importante torneio de futebol do mundo tenha
sido motivada por uma mudança de suas avaliações do governo Dilma.
O vira-latas, porém, está lá. Ambas as celebridades não criticaram o
governo, criticaram o Brasil. Fizeram críticas ao país, e não ao governo Dilma:
o Brasil estaria à beira de uma convulsão social, o Brasil viria a ter uma
imagem negativa no exterior. As críticas ignoram completamente as evidências
objetivas do que está acontecendo: na França, é recorde o número de franceses
que viajará ao exterior para assistir à Copa do Mundo, nunca tantos ingressos
foram vendidos (aliás, o fato de os brasileiros serem os principais compradores
é apresentado como um sinal de nossa inferioridade pelos que sofrem do
transtorno de vira-latas), o álbum de figurinhas da Copa é um sucesso absoluto.
Aliás, o terapeuta recomenda como parte do tratamento para o transtorno
de vira-latas que aqueles acometidos por este mal façam o álbum da Copa e se
dirijam para os pontos de troca de figurinhas. É uma experiência única, mais do
que educativa e, provavelmente, só acontece no Brasil. Obtive no último fim de
semana pouco mais de 160 figurinhas para os álbuns dos meus filhos. Há pessoas
de todas as idades, famílias, casais de namorados, amigos, todos movidos por
uma grande relação de confiança que possibilita que os bolinhos de figurinhas
repetidas passem de mão em mão e depois retornem ao seu dono com as figurinhas
devidamente trocadas. Não há roubo de figurinhas nem malandragens, a ajuda
mútua é o que guia os participantes desses encontros.
Este é o país que os pacientes acometidos pelo transtorno de vira-latas
não conhecem. Esta é a delícia de nossa existência como brasileiros.
Alberto Carlos Almeida,
sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro".
alberto.almeida@institutoanalise.com
www.twitter.com/albertocalmeida
________________
Colaboração recebida de Geniberto Campos, Brasília-DF
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