segunda-feira, 21 de outubro de 2013

 Por Franklin Jorge
Manuel Bandeira [1886-1968] sente saudades do Rio de Janeiro antigo; de um Rio de Janeiro que tinha apenas quinhentos mil habitantes. O Rio que conheceu quando aqui chegou aos dez anos. Não esse Rio cuja luminosidade sugere-lhe automóvel noturno de novo-rico. Um Rio que ainda o fazia sonhar.
Oh que saudade que eu tenho,
Do Rio, como era antes!
O Rio que tinha apenas
Quinhentos mil habitantes…
Domina-o a melancolia ou o gosto cabotino da tristeza ao repassar o nome de ruas que havia no Rio antes do prefeito José Joaquim de Sá Freire Alvim [1909-1981]. Nomeado por Juscelino Kubitschek [1902-1976], governou o município de 1956 a 1961. Desmoralizou a tradição e passou como um trator sobre antigas denominações poéticas ou populares que resistiram a outros surtos de vandalismo, como a Rua da Princesa – nome que cheira a jardim, segundo o poeta em sua declaração de amor à cidade -, Rua da Alegria, Rua Direita da Sé (“nome firme, nome nobre; nome em que nada há que dobre; nome afirmação de fé”); Travessa do Sereno; Rua do Sabão; Largo da Mãe do Bispo e Rua do Bispo, que ainda resistiu um pouco depois que se lhe fora a genitora. Ruas de ofícios, dos Ourives; dos Latoeiros; do Ouvidor, antigamente Caminho do Mar… Um Rio onde respiravam ainda Sinhô e Tia Ciata.
Muito nome tradicional foi mudado, adverte-nos o poeta, mas o novo não pegou.  Nunca ninguém falou senão Largo do Machado, apesar das tentativas frustradas de alterar-lhe a identidade familiar e habitual, lembrada por todos, em vez de Largo Machado de Assis – esse de Assis acrescentado depois, como sugere a partícula “do” que consta do largo, uma alusão direta ao descomunal objeto cortante que, colocado na fachada de estabelecimento comercial, chamou a atenção para o endereço que se tornou conhecido em toda a cidade o açougueiro e marqueteiro avant la lettre. Essa história Bandeira ouviu de um amigo que lhe contou também que ali perto, seguindo pela Rua do Catete, subindo pela rua que leva o nome de Machado de Assis [1839-1908], o mestre escreveu o Brás Cubas, em 1880, livro que inicia o realismo no Brasil.
Bandeira sofre toda vez que lê nos jornais que um velho monumento vai ser restaurado. É radical e não abre mão de um único princípio: quando não for possível restaurar dignamente um velho monumento, melhor será deixá-lo arruinar-se inteiramente, sentencia o poeta. É preferível a ruína que resulta das intempéries do que a provocada pela mão dos homens.  “As ruínas apenas entristecem. Uma restauração inepta revolta, amargura, ofende…”
Nascido no Recife à Rua Joaquim Nabuco, Bandeira chegou ao Rio em 1890, depois em Santos, São Paulo, e novamente Rio (Petrópolis) e Pernambuco e Rio 1896-1902, São Paulo 1903-1908, Rio, Europa, Brasil… No Rio transcorre a vida do poeta, onde vive em diversas fases de sua vida, numa chácara na Gávea e no pequeno apartamento na Lapa, e no Rio se realiza como professor, do tradicional Colégio Pedro II, fundado pelo imperador e da Faculdade de Filosofia, e, também, pela contribuição intelectual como escritor e cronista. Membro da Academia Brasileira de Letras, morre solteiro, sem filhos, sem gatos nem criados, porém de espírito sempre jovem. O Rio está entranhado em seus escritos, usados às vezes como petardos para pressionar políticos e gestores relapsos ou ineptos.
Desses não escaparam à afiada lâmina de sua verve os excelentíssimos senhores prefeitos Hildebrando Araújo de Góis [1899-1980], Ângelo Mendes de Morais [1894-1990] e Henrique Dodsworth [1895-1975]. Hildebrando, que governou de 1946 a 1947, por ter deixado no Castelo, perto da Avenida Beira-Mar – onde habitava o poeta – um pátio que é via pública transformar-se em um grande charco de imundícies, monturo regurgitando de tripas de peixe, cascas de fruta e ovo, conforme registra em versos em sua peremptória admoestação poética:
…Mandai calçar a via pública
Que, sendo um vasto lagamar,
Faz a vergonha da República
Junto à Avenida Beira-Mar!
Ao general Mendes de Morais, que governou o Rio de Janeiro de 1947 a 1951 endereça petição cobrando-lhe o fim do pântano que há se formado no quarteirão onde se encontram as avenidas Antonio Carlos, Beira-Mar, Wilson e Calógeras, pleito já encaminhado e esquecido pelo antecessor do general no cargo de prefeito:
…Fiz, por sanear-se esta marema,
Uma carta desesperada
Ao seu ilustre antecessor,
Uma carta em forma de poema:
O homem saiu sem fazer nada…
Pelo martírio do Senhor,
Ponha o pátio, insigne prefeito,
Limpo como o olhar da inocência,
Limpo como – feita a ressalva
Da muita atenção e respeito
Devidos a Vossa Excelência –
Sua excelentíssima calva!
Henrique Dodsworth, esse sequer o poeta leva à sério. Prefeito de 1937 a 1945, sob a ditadura Vargas, quis derrubar a igreja do Senhor Bom Jesus do Calvário da Via-Sacra, da Ordem Terceira, na Rua Uruguaiana, para abrir uma avenida. Bandeira compõe uma prece pela sua alma ímpia e inestética:
Senhor Bom Jesus do Calvário e da Via-Sacra
O prefeito Henriquinho
Vai derrubar o teu templo da Rua Uruguaiana
Pra abrir uma avenida!
[...]
Senhor Bom Jesus do Calvário e da Via-Sacra
Quando o prefeito morrer
Não o mandem para o inferno:
Ele não sabe o que faz.
Mas um seculozinho a mais de Purgatório
Não seria mau. Amém.
Apetece o Rio de Janeiro ao poeta. Apetece-lhe mesmo as pendências e discórdias do tempo, havidas entre o Senador Eusébio e o Visconde de Itaúna que, morando na mesma Rua Carmo Neto, uma casa em frente da outra, em perpétua desavença não podiam se bicar, aí teve o bom Dom João VI o bom alvitre de plantar entre as residências quatro renques de palmeiras imperiais para que não se avistassem ao sair e ao chegar.
Morro da Babilônia, onde morou João Gostoso, carregador de feira livre, uma noticia que o poeta leu num jornal. Celebrou João Gostoso a vida no bar Vinte de Novembro, bebeu, comeu, dançou e em seguida afogou-se na lagoa Rodrigo de Freitas. E Misael, 63 anos, funcionário da Fazenda que se apaixona por Maria Elvira, mulher que conheceu na Lapa, prostituída, com sífilis, dermite entre os dedos, os dentes em petição de miséria e uma aliança empenhada?
O Mangue – como os mangues da Veneza americana -, onde há cargueiros atracados nas docas do Canal Grande, já foi um subúrbio mais suburbano que a Baixada Fluminense se tornaria depois; e ao pé do Morro do Pinto, trapiches alfandegados, onde passam estivadores de torso nu, e sob a abóbada celeste o luar era uma coisa só.  Mangue enfim verdadeiramente Cidade Nova, de casinhas tão térreas onde tantas vezes devaneou Manuel que foi funcionário público, casado com mulher feia, destinado a morrer de tuberculose pulmonar, pensando na vida que podia ter sido e não foi.
.Fragmento do livro Passeios literários no Rio de Janeiro [inédito].

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