segunda-feira, 21 de outubro de 2013



“MAIS MÉDICOS: QUO VADIMUS, DOMINE?”
Geniberto Paiva Campos – Observatório da Saúde/DF  - outubro/2013

O programa “Mais Médicos” é filho dileto, e inesperado, das Manifestações de Junho. Estas pegaram de surpresa os poderes constituídos da República, particularmente o Executivo e o Legislativo, os quais se empenharam na busca de respostas convincentes e imediatas que pudessem aquietar a turba.
A contratação de médicos para municípios e regiões carentes do país, através do programa planejado e executado pelo  Ministério da Saúde, foi a resposta que ganhou mais evidência. E a que provocou maior polêmica.
As comunidades e as nações também vivem os seus momentos, os bons e os ruins. E, parece, no quesito inovação e criatividade, o Brasil não vive um dos seus melhores momentos. Devemos admitir, no entanto: os  desafios  são outros e maiores, neste início de século. E, de repente, surgiu um novo ator  que, de forma abusada e irreverente, se insinuou no palco político a criticar as obras executadas, os projetos e os planos dos três níveis de governo. E ele tem pressa. E paciência curta. O que torna as coisas mais difíceis para os governantes. Afinal, as respostas precisam ser rápidas. E consistentes.
Um outro importante fator a ser considerado é o grau crescente de despolitização que o país atingiu na última década. Graças ao trabalho persistente e incansável da Imprensa, instituições do poder, a classe política, pessoas físicas e jurídicas foram levadas a um ponto extremo de descrédito. E não são mais vistos como confiáveis. Por serem pecadores, presumivelmente pegos pela Mídia em flagrante delito, tornaram-se um mal. Se possível a ser extirpado. Enfim, deixa-se gradativamente de se fazer Política e se adentra no perigoso terreno da moralidade teológica, característico de épocas anteriores, onde predominavam a intolerância e o arbítrio. O velho e confiável Maniqueismo. Que simplifica  - e  facilita - tudo, dividindo o mundo entre bons e maus. Mocinhos e bandidos. O claro e o escuro, sem nuances.
Nesse inquietante caldo de cultura o “Mais Médicos” foi  concebido e apresentado pelo Governo Federal, através do Ministério da Saúde, como solução mágica para uma série de problemas vivenciados pelo Sistema Único de Saúde. Inicia-se, então, um desatinado confronto entre o MS e as entidades médicas. Uma comédia de erros sucessivos em que a  mínima racionalidade foi esquecida. Uma guerra particular entre o Governo e a categoria dos médicos. E como dizem, em todas as guerras a primeira vítima é sempre a verdade. Só que neste conflito específico a vítima habitual, eterna, o Usuário é a primeiríssima a tombar. Os conceitos atuais de Saúde Pública foram para o espaço. Convenientemente esquecidos pelos litigantes. Infelizmente, não se ouviu nenhuma voz chamando os bravos guerreiros à razão.
O Congresso Nacional foi o local de desfecho das primeiras batalhas. Como esperado, as decisões não favoreceram os anseios impeditivos das entidades médicas. Afinal, não ficaria bem aos “representantes do Povo” votar contra ida de médicos – agora chamados, pejorativamente(?) de “intercambiantes”- para locais onde eles não existem. E onde talvez nunca puseram os pés.
O que teria levado o conflito a esse ponto? O que faltou, ou teria sobrado, para que a irracionalidade atingisse tal impasse? Despolitização, maniqueísmo talvez expliquem  apenas parte desse estranho litígio. Mas além do preconceito, existem aí sérios erros de avaliação,  conceituais e políticos. Imperdoáveis, considerando a natureza  profissional dos litigantes.
Pode-se começar  pelo foco, praticamente exclusivo, na figura do Médico como centro dos Serviços Assistenciais. Nada mais equivocado. E esse enfoque teve início há mais de dez anos, com o projeto do “Ato Médico”, muito caro às entidades de classe. Mas que transitou  por  longo tempo no Congresso, sob o bombardeio das outras profissões de saúde, absolutamente  inconformadas com papel subalterno a que foram relegadas no Projeto. O que estaria na contra-mão das tendências observadas nos países em que a assistência médica atinge graus elevados de excelência , nos quais profissionais de outras especialidades vêm há longo tempo, e naturalmente, exercendo funções cada vez mais relevantes na esfera assistencial .
Como consequência desse enfoque, foi  adotada no debate a contagem relativa dos médicos  disponíveis para a população geral, praticada no século passado, cravando-se um  número ideal dessa relação, 2 médicos por mil habitantes. Esquecendo-se,  nessa matemática simplista, que a célere introdução de novas tecnologias  médicas, além do concurso de outros profissionais da saúde no diagnóstico e no tratamento dos pacientes, tornou obsoleta essa contagem. Os padrões mudaram. Por exemplo, a  oferta de  leitos relacionados à população, também mudou. As internações são mais curtas e a capacidade resolutiva de instâncias assistenciais de nível intermediário reduziu a necessidade de leitos disponíveis para a população.
O debate sobre Saúde Pública ficou empobrecido. Quase não se falou sobre modelos assistenciais. A importância crucial da Atenção Primária de Saúde  como locus estratégico da organização de serviços na Rede Pública. O debate ficou restrito à criação de obstáculos à execução do Programa por parte das entidades da classe e à capacidade do MS em superá-los. De passagem, foi tocado no tema “carreira de Estado” para profissionais de saúde, mas se avançou muito pouco, considerando a urgência do assunto.
Enfim, o que se presenciou, lamentavelmente, na refrega entre os dois contendores, foi apenas uma visão arcaica do conceito de Saúde, não compatível com os padrões atuais. Recuamos  para o século passado.  A luta(?) não teve vencedores. O mais provável é que o Povo Brasileiro, sobretudo o Usuário carente de serviços públicos de saúde, tenha sido o grande perdedor dessa incrível, espantosa  batalha entre o rochedo e o mar. Vejamos o que  se pode aguardar nos próximos capítulos.
“QUO VADIMUS, DOMINE?

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