TEXTOS SELECIONADOS DE
POESIA E PROSA PARA UM DOMINGO DA GUARESMA
PROMETEU FINALMENTE
ADORMECIDO
As piedosas mãos das Parcas
conduziram Márcio Pacheco aos Campos Elíseos. Durante muito tempo esteve
acorrentado à terrível doença, perigosamente caminhando sobre o fio da navalha
e observando temeroso a espada de Dâmocles despencar de um fio de cabelo.
Sua viagem ao outro lado das
estrelas levou-me, na pálida manhã de Brasília, a reler a parte final do
magnífico e longo poema La Muse, de Alfred
De Musset, “lorsque Le pélican, lassé d’um long Voyage”:
“Mas, às vezes, durante o divino
sacrifício,
fatigado de morrer num sofrimento
tão longo,
pede aos seus filhos que não o
deixem viver;
Ergue-se, asas abertas aos ventos
estendidas,
no bater do coração o derradeiro grito
prolongado,
selvagem, atravessando a noite do
seu fúnebre adeus,
que levou aves marinhas a abandonar
seus ninhos,
ao solitário andarilho,sentindo passar a morte,
na praia recomendar-se a Deus”
Estou fatigado de perder amigos e sentir que estou ficando
só.
DEZ RÉIS DE ESPERANÇA
Se
não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.
(António Gedeão)
OS BEIRAIS SABEM
“A verdade cabe em qualquer lugar.”
(Anônimo)
Horácio Paiva.
(E-mail:
oracio_oliveira@uol.com.br)
O meu amigo Jaime, conheci-o numa
reunião festiva do Centro Paraibano, dirigido, em Natal, na década de 80, pelo
bancário e advogado Agamenon Marques.
Sabendo de meu gosto pela
literatura, teve o gesto amável de presentear-me com um volume dos “Cuentos de la Selva ”, edição mexicana
de 1985, do célebre escritor uruguaio Horacio Quiroga. Selou, assim, a amizade
que se iniciava.
Convidei-o a ir, no domingo, à
minha casa na calma enseada da Praia de Búzios, próxima a Natal.
Da varanda, víamos o mar. Mas
neblinava, e a fina e tenra chuva que caía nos convidava ao recolhimento, à
conversa serena e - por que não?
- à degustação de uma acolhedora
cachaça nordestina.
Naquele momento, revelava, assim,
o dia, a sua harmonia e a sua paz, assemelhando-se àquele instantâneo paradisíaco,
descrito por Nikos Kazantzákis, em “O Cristo Recrucificado”, quando o
personagem identifica o paraíso no dia calmo, a chuva fina, a conversa mole na
varanda e o degustar do narguilé.
Puxando conversa, e introduzindo o
visitante na atmosfera de Búzios, lembro de um comentário inicial que fiz sobre
o nome do lugar, advindo, segundo Câmara Cascudo (in “História do Rio Grande do Norte”), da grande quantidade de
búzios ali antigamente encontrada, objeto, no século XVI, de um édito real,
disciplinando a sua exploração, já que o marisco era usado como moeda de troca
na África colonial portuguesa.
Da história, a conversa girou, em
contraponto tempestuoso à paz daquele dia, para as velhas e violentas práticas
da política interiorana, na primeira metade do século XX.
Dos relatos de meu amigo, um
deles, pela singularidade, ainda o guardo na memória.
Jaime não lembrava os nomes dos
figurantes e do lugar onde se deram os acontecimentos. Ou não os quis lembrar,
provavelmente porque não havia ainda perdoado o tempo os fatos a seguir
transcritos. Dessa forma, e não obstante a veracidade de sua história, utilizou
nomes fictícios.
O Major Vicente Honório, através
do grupo oligárquico que chefiava, exercia o controle político do município de
Pedra Queimada, há mais de vinte anos. Liderança que remontava à República
Velha, mas que não vacilou em aderir ao novo poder que se consolidara no País,
com a chamada Revolução de 30. Prática, aliás, comum aos velhos (e novos)
“coronéis”, que, useiros e vezeiros das benesses do poder, não suportavam ver
questionados e contrariados os seus interesses pessoais e grupais.
Com o advento do Estado Novo, em
1937, obteve a sua nomeação como prefeito, permanecendo no cargo até 1º. de
janeiro de 1948, quando deu posse a um membro de sua própria família, um primo,
eleito em fins de 1947.]
Essa campanha eleitoral de 1947, a primeira, na esfera
municipal, após a redemocratização, fora marcada pelo tumulto e pela violência,
traduzindo-se, a expressão máxima dessa violência, na notícia do assassinato do
insigne e corajoso líder oposicionista, o boticário Afrânio Lopes - o
mais cotado, pela popularidade, a vencer o pleito.
Tarde da noite, quando as trevas venciam
a rua mal iluminada, bateram à porta de sua farmácia, que funcionava no andar
térreo da casa onde morava. Ao atender, foi atingido pelo tiro fatal. Morreu instantaneamente,
sem conseguir pronunciar palavra, nada, nenhum sinal que levasse ao assassino.
Em tais casos, o silêncio é
insuportável, sobretudo em meio a uma agitada campanha política. Os detratores
do Major atribuíam-lhe o crime. Hipótese rechaçada, veementemente, pelos seus
aliados. Estes propalavam outras motivações, vinculadas a negócio de dinheiro,
a dívidas não quitadas pelo boticário, ou ao seu forte carisma, gerador de
ciúmes em alguns.
O Major, também, dizia-se inocente
e vítima política do crime. Chegava a emocionar-se nos palanques, e, certa vez,
até a chorar ante o que chamava de injusta
acusação, que não poderia admitir partisse do povo que tanto amava e por
quem se sacrificara ao longo dos anos, creditando-a, sim, à maldade e ao
radicalismo de seus ferrenhos adversários e detratores.
A polícia local - por
inoperância, despreparo, ou mesmo cumplicidade com os seus chefes
políticos - jamais chegou a desvendar o crime. E o papel
de grande vítima foi-se incorporando
à personalidade política do Major, e explorado, com êxito (embora repudiado pela
oposição, que jamais se conformara com a perda do líder), nessa campanha e
mesmo nas seguintes.
O mais enfático arauto dessa tese
era o seu filho, propalando eternamente a inocência do pai, mesmo quando, com o
passar do tempo, já não havia clamor ou questionamentos. Com efeito, o assunto
arrefecera, e a insistência do filho tornara-se um banal lugar comum em seus
discursos. Até uma impertinência, dizia-se, pois sempre voltava com aquela fala
demagógica do pai injustiçado.
Aquilo já incomodava. A memória do
fato funesto, insepulta, repetitiva, viva naqueles discursos febris de defesa
sem limites, incomodava a todos, inclusive ao próprio pai, que chegava a pensar
nos familiares da vítima e na segurança do filho.
Portanto, chamou-o, um dia, à sua
fazenda Olho d’Água, nas cercanias da
cidade, local apropriado a uma conversa a dois, franca e sincera. Chovia
copiosamente, e a chuva escorria, em cântaros, pelos beirais do alpendre. Foi
direto ao assunto: o filho devia parar, imediatamente, com aquela peroração
extrema e desnecessária, cujas conseqüências poderiam ser imprevisíveis. E
acrescentava, apontando os beirais, tomados pela volúpia das águas: “- Não seja ingênuo; até os beirais sabem
mais do que você.” Sem entender, o
filho, atônito, ouviu, afinal, a drástica revelação: “- Eu mandei matar Afrânio Lopes! E está acabado!”.
Os tempos haviam mudado. Ainda não
ocorrera a prescrição da pena atribuída ao crime. E havia o receio do caso vir
a ser reaberto.
CONSTRUÇÃO
Ciro José Tavares
Estou pela metade submerso no que
resta
do lusco-fusco da meia luz de velas
que se extinguem.
No fundo das sombras
os renovados mistérios
farão emergir minha
alma para construir
a metade mais nobre e mesmo entardecido,
cego voltarei completo aos claros,outra vez.
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