domingo, 22 de janeiro de 2012

P A R A D O X O S
E O PALHAÇO CHORA
(Eugénio de Sá)

Chora-lhe a alma enquanto os olhos riem
é assim o palhaço original
vertendo da existência o pior mal
no âmago de si, sem outros o sentirem

E na dor mergulhado finge ser
da hilaridade o seu senhor
mas fica-lhe a tristeza por penhor
vergando-lhe ao desgosto o padecer

Na pobreza das vestes é grotesco
desfigurada a face à alquimia
que lhe acentua o esgar quase dantesco
querendo tornar veraz a alegria

Mas se o cobre riqueza bijouteira
E a alvura lhe manda na aparência
quase aflora a demência tal bobeira
Perante a contradição da evidência


VELHAS TRISTEZAS
(Cruz e Souza)

Diluências de luz, velhas tristezas
das almas que morreram para a luta!
Sois as sombras amadas de belezas
hoje mais frias do que a pedra bruta.
Murmúrios ncógnitos de gruta
onde o Mar canta os salmos e as rudezas
de obscuras religiões — voz impoluta
de todas as titânicas grandezas.

Passai, lembrando as sensações antigas,
paixões que foram já dóceis amigas,
na luz de eternos sóis glorificadas.

Alegrias de há tempos! E hoje e agora,
velhas tristezas que se vão embora
no poente da Saudade amortalhadas! ...


O Passado...

Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos
desviam-se com prudência.
Que importa a eles o sobrado?
Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
-Que vale para eles o sobrado?
Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?...
Que importa a marca dos retratos na parede?
Que importam as salas destelhadas,
e o pudor das alcovas devassadas...
Que importam?
E vão fugindo do sobrado,
aos poucos,
os quadros do Passado.

( Poema de Cora Coralina )
Ao coração que sofre
(Olavo Bilac)

Ao coração que sofre, separado
Do teu, no exílio em que a chorar me vejo,
Não basta o afeto simples e sagrado
Com que das desventuras me protejo.

Não me basta saber que sou amado,
Nem só desejo o teu amor: desejo
Ter nos braços teu corpo delicado,
Ter na boca a doçura de teu beijo.

E as justas ambições que me consomem
Não me envergonham: pois maior baixeza
Não há que a terra pelo céu trocar;

E mais eleva o coração de um homem
Ser de homem sempre e, na maior pureza,
Ficar na terra e humanamente amar.



Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

( Poema de Cecília Meireles )

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