sexta-feira, 6 de agosto de 2010

ANA MARIA CASCUDO: SEMENTE, FRUTO E FLOR


Arte: Óleo sobre tela de Maria Alice Brandão


“Adestrei-me com o vento e minha festa é a tempestade”
Cecília Meireles
“Sou como você me vê.
Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania,
Depende de quando e como você me vê passar.”
Clarice Lispector


Há pelo menos duas personalidades que me surpreendem pela força de suas individualidades: Luís Fernando Veríssimo(1) e Ana Maria Cascudo. Ambos tiveram pais exponenciais, dedicaram-se ao ofício da escrituração literária e sobreviveram, ilesos, resistindo à sombra ocultável da paternidade, à implacável aguarrás com potencial para desvanecer qualquer figura de qualquer matiz, ou, pior que isso, de indiciar sugestiva oportunidade de auto-promoção às custas do sobrenome ilustre que lhes sovinasse os valores pessoais.
Em posição mais confortável, mas igualmente incômoda, situou-se Zélia Gattai, mulher do maior romancista brasileiro contemporâneo, Jorge Amado. Escritora que sempre teve uma identidade própria, mas esta se confundia com a do seu afamado companheiro. Mesmo quando produziu “Anarquistas graças a Deus”, ainda se tinha a impressão de que o dedo do notável escritor haveria passeado pelo teclado de sua máquina e produzido, senão a totalidade, alguns textos adjutórios. E também Clara Ramos, filha do notável Graciliano das Alagoas, que, bem a propósito, num gesto de ousada autoconfiança, tornou-se a mais autorizada especialista da obra paterna(2).
É certo que, cedo ou tarde a verdade subjacente ao mito aflora, confirmando a versão, ou a desautorizando, por mérito próprio dos herdeiros, ou pelo desfazimento da sombra protetora, com a paralisia criadora ou o óbito dos instituidores da herança.
Ocupo-me agora de Ana Maria, filha dileta do Mestre Luís da Câmara Cascudo e tão presente na vida desse extraordinário homem de letras norte-rio-grandense, quanto, só para citar como exemplo, minha amiga e colega de turma Vitória, filha do também valoroso intelectual potiguar Américo de Oliveira Costa e da culta e inteligente Helena Kazantzakis, esposa do excepcional pensador e escritor grego/cretense Nikos Kazantzakis(3).
A diferença entre as duas herdeiras intelectuais e Ana Maria é que esta última se impôs com identidade inconfundível, conservando a memória do seu famoso ancestral, e até fundindo-se a ele, todavia sem se diluir ou amalgamar-se, como curadora do seu acervo e difusora de sua memória, num gesto também marcante de extrema ousadia e auto-confiança, mas tendo o cuidado de demarcar o seu território, imprimindo a sua “griffe” e afirmando-se como legítima portadora do DNA paterno, sem contudo ser caudatária por graça ou beneplácito desse legado. Mesmo porque é impossível a clonagem desse espécime irreproduzível.
Ana Maria Cascudo é Ana Maria Cascudo, acidental e afortunadamente filha da maior expressão intelectual do Rio Grande do Norte, e das maiores do país, posição que não renega e que é motivo maior do seu orgulho, mas que não interfere nem pode ser dada como responsável pelas posições que conquistou – sobretudo em relação àquelas alcançadas após a morte do pai.
É uma mulher extraordinária, inteligente, decidida, culta e original naquilo que faz – fazendo bem tudo o que faz.
Graduou-se em Direito e foi uma das raras mulheres de sua turma. Foi promotora de justiça, a mais jovem do Brasil e a primeira do Rio Grande do Norte a participar de um júri. Jornalista dentre pouquíssimas do seu sexo. Foi uma mulher liberada, independente, bem à frente dos padrões de sua época de muito jovem, quando as mulheres eram preparadas para serem submissas e “guarda-costas” dos maridos (explico-me: aquela estória do `por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher´) como, exemplificativamente, e por vontade própria, muita renúncia, muito amor e a exata compreensão do destino do consorte, fez a sua mãe, dona Dahlia.
No caso de dona Dahlia, menos do que a sua formação tradicional e a cultura da época, pesou mais a madura percepção de que o seu marido fora destinado a outro consórcio, paralelo ao seu e, e, por mais paradoxal que fosse, a esta circunstância deveria se submeter: as leituras, as pesquisas e o apaixonante ofício de escrever.
Ana casou-se duas vezes, teve três filhos e três netos, e conseguiu manter-se funcional como dona de casa, doando-se como esposa, mãe e avó, mas conservando a sua identidade e independência. Nunca foi apêndice, nem metade ou anjo da guarda, sempre foi companheira, devotada, fiel, amante, mas companheira, parceira existencial. Assim foi com o major Newton Roberti Leite, primeiro marido, de quem se tornou viúva, e com a notável criatura humana com quem mantém uma relação estável, duradoura, amorosa e fraterna, Camilo Barreto.
Tenho a premonição de que o mesmo destino da mãe será o de Camila, jovem advogada e escritora talentosa e criativa, que se envaidece da condição de neta e filha de quem é, mas se conserva individualista por crença e determinação pessoal. É conselheira intelectual da mãe (sobretudo nos títulos e nas avaliações das suas obras) assim como assessorava a avó Dahlia nos raros e encantadores depoimentos pessoais. Geralmente sobre o marido ou a sua convivência com o gênio da cultura potiguar.
Recolhi, por obra e graça de Camila, sua filha, ainda no começo da sua adolescência, quando eu editava a Revista Exclusivo, um tocante depoimento de dona Dahlia sobre o seu namoro com um romântico Cascudo. Depois, Diógenes da Cunha Lima leu-me outro depoimento dessa encantadora criatura onde ela confessa e explica, com convicção e maturidade, sobretudo com muito amor e devoção ao marido, a sua decisão de secundá-lo e nunca disputá-lo com a sua obra, como já expus.
(Aos nove anos de idade Camila publicou um livro infantil, “O Reino das Joaninhas” e agora, premida pelo ofício profissional da advocacia e um curso de pós-graduação na Argentina, escreve artigos e monografias jurídicas. Mas, aguardem e verão o renascimento dessa mais nova matriz Cascudiana)
Por esses dois exemplos, creio mesmo que a estirpe do mestre Luís da Câmara Cascudo não conserva moldes que possam ser legados hereditariamente, ao invés, cria matrizes a cada geração, embora o gene responda fundamentalmente pelas características das matrizes. Assim sucedeu com o coronel Francisco Cascudo, político e jornalista, que criou a matriz de Luis, que, por sua vez se fez semente da matriz de Ana e esta, de sua filha Camila.
Todos são personagens Cascudianos: o coronel, dona Dahlia, Ana e Camila. Longe de ser uma fatalidade é uma benção, porque todos se energizaram com a aura do sábio da Junqueira Aires. E é tão poderosa essa energia, irradiante e luminosa, que alcança até os ancestrais, como em relação ao pai Francisco, maior admirador e incentivador do filho, um homem maior que a sua estatura e que se agigantou mais ainda pela gênese, formação e decidido apoio ao magnífico rebento. Expandiu-se no filho.

Diz Simone de Beauvoir(4) que não se nasce mulher: torna-se. Num primeiro momento se é tomado por duas linhas de reflexão coincidentes, mas não iguais. Aquela que nos conduz à singela constatação de que se nasce criança e que a natureza mulher revela a maturidade da espécie, e aquela, de mais difícil arquitetura, segundo a qual se nasce sexuado: masculino e feminino, macho e fêmea – condições biológicas. E que, ser mulher é condição humana.
Segundo magistério de Hannah Arendt(5), condição humana não é a mesma coisa que natureza humana. A condição humana diz respeito às formas de vida que o ser humano impõe a si mesmo para sobreviver. As condições variam de acordo com o lugar e o momento histórico do qual o ser humano é parte. Nesse sentido todos os seres são condicionados, até mesmo aqueles que condicionam o comportamento de outros tornam-se condicionados pelo próprio movimento de condicionar. Sendo assim, somos condicionados por duas maneiras: Pelos nossos próprios atos, pelo que pensamos, por nossos sentimentos, em suma os aspectos internos do condicionamento, ou pelo contexto histórico que vivemos, a cultura, os amigos, a família; são os elementos externos do condicionamento.
Posto desta forma, apesar da tese indicar certa complexidade filosófica, a equação nos parece mais raciocinada, mais plena de sentido, mais lógica. Ser mulher é ato de conquista, atestado de maturidade, certificação, transcendência. Assim como ser homem.
Veja-se que a expressão “homem” já foi designação do próprio gênero, o ser humano, tal a sua proeminência numa cultura dominada por esta espécie. Gradativamente, como resultado de uma lenta mas obstinada luta pela igualação das condições, a mulher conquistou a posição de parceira nas elaborações sociais.
Mas são condições diferenciadas, do ponto de vista biológico e, em decorrência desta natureza, que também diz respeito ao aspecto funcional. Sempre foi assim. A diferença entre antigamente e o momento contemporâneo é que hoje essa distinção não é aceita como reducionista, em desfavor da condição de plenitude da mulher, mas no reconhecimento de que o seu potencial competitivo ultrapassa o que antes era tido como limitações.
Afinal, o homem também é limitado no seu contexto humano, tanto que expõe e amplia como vantagem, a sua condição física, antes dada como proeminente em relação à mulher. São biotípico e espiritualmente diferentes. Esta é lunar, aquele é solar. Esta é esquerda, aquele é destro. Passiva, ela, ativo, o homem. Ambos, seres animados pela mesma inteligência e aptidão.
Mas em favor da mulher milita a presunção de que ela é o mais importante ser em transição na natureza, porque é semente, é matriz e germinadora, tendo-se em mente que metade da população do universo é composta por pessoas de sexo feminino. E a outra metade de filhos dessa espécie.
Essas digressões, aparentemente dissociadas do contexto, na verdade ajusta-se como uma luva á nossa perfilada. Ana competiu, lutou e venceu. Tornou-se mulher, condição humana e alcançou o ponto de equilíbrio com a outra espécie, dita dominante. Tanto é verdade, que os preconceitos e as desconfianças que a cercavam em razão da digital do pai, desvaneceram-se diante da evidência do seu espírito livre de amarras e aguerrido e do seu talento pessoal.
Aos treze anos iniciou-se no jornalismo, quando muitas adolescentes ainda confidenciavam com suas bonecas ou suspiravam os primeiros sonhos sexuados. Manteve uma coluna sobre a Bossa Nova chamada “Cantinho Hi-Fi”. Prosseguindo no jornalismo, durante anos a fio manteve no jornal “A República” uma coluna em que escrevia sobre assuntos sócio-culturais reservando os domingos para a publicação de biografias femininas que lhe forneceu material para o primeiro livro – “Mulheres Especiais”.
Lembro que a jornalista Ana Maria foi convidada por mim, com a intermediadora cumplicidade de Camila, para integrar a equipe de colaboradores da já citada revista Exclusivo, e a matéria de sua estréia tratava de um assunto no mínimo intrigante, senão um tanto “gauche” para uma revista que se afirmava pelo bom gosto dos temas escolhidos: Unhas encravadas. Num primeiro momento, ficamos entre surpresos e constrangidos, mas depois que lemos o artigo pudemos comprovar a qualidade da jornalista, a capacidade de prestidigitadora, de manipuladora-aliciadora de textos banalizados, tal qual o fazia o Mestre Câmara Cascudo.
Depois de “Mulheres Especiais”, publicou “O colecionador de Crepúsculos”, foto-biografia do pai ilustre; “Neblina da Vidraça”, sobre a vida e obra da poeta Palmyra Wanderley (6) e aguarda a edição de “O Herói Oculto”, já no prelo, biografia do avô, coronel Francisco Cascudo(7).
Ocupa a cadeira número treze na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, sucedendo ao mestre Cascudo e essa foi considerada por ela a maior distinção que recebeu ao longo de sua vida; é membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e da União Brasileira de Escritores; uma das fundadoras da Academia Feminina de Letras do RN e da Academia de Letras Jurídicas do RN; sócia correspondente da Academia Paulista de Letras - onde o pai era membro – e da Academia de Letras, História, Cultura e Arte, também de São Paulo.
Vale considerar que valoriza com entusiasmo todas as homenagens prestadas ao seu pai-ídolo, mas registra com muito carinho a original manifestação popular de uma escola de samba de São Paulo que escolheu o Mestre do Folclore Brasileiro como tema do seu enredo carnavalesco. Nisso ela se assemelha ao pai, na devoção e valorização da cultura popular.
Atualmente, a jornalista Ana Maria Cascudo é tema de trabalho de conclusão de curso das turmas de jornalismo da Universidade Potiguar
Promove, patrocina, apóia, auxilia e estimula todas as iniciativas e eventos sobre a vida e a obra de Câmara Cascudo. Recentemente tomou sob seus cuidados o Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, fazendo doação dos direitos autorais da obra Cascudiana para esta entidade, objetivando a sua manutenção.
É esposa, mãe de três filhos – Daliana, Newton e Camila, e avó de Diogo, Alana e Cecília, com muito açúcar e muito afeto. Católica apostólica romana, tem um pezinho nos terreiros dos cultos afro-brasileiros, pelo fascínio e magia dessa manifestação religiosa, mas sobretudo por suas raízes, campo de pesquisa e de estudo do seu pai. Ano passado realizou conferência sobre a obra de Cascudo na Universidade Católica de Umbanda, em São Paulo.
Se me perguntassem quais os traços mais persistentes de Ana Maria,eu responderia, sem hesitar: a obstinação e a determinação, a inteligência aguda e a devoção filial.
É mulher de personalidade forte, capaz de endurecer-se mas sem perder a ternura jamais, como o revolucionário argentino emprestado a Cuba. Ou, como na observação de Clarice Lispector, no preâmbulo deste texto, surpreender aos que pensam que a conhecem, sendo “...leve como uma brisa ou forte como uma ventania...” dependendo de quando e como você a vê passar.
(1) Verissimo escreveu mais de cinqüenta livros, incursionando com desembaraço pela crônica, romance, poesia e literatura infantil
(2) “Mestre Graciliano: Confirmação humana de uma obra”, 1979, premiado pelo Instituto Nacional do Livro. Ainda escreveu cinco livros: A Estrela Pisca-pisca Nórdica 1990 Zé da Verdade Melhoramentos 1990 A Formigarra Memórias Futuras 1992 Cadeia José Olympio 1992 Memórias da Cachorra Baleia Mem 1992. Faleceu aos sessenta anos de idade.
(3) "Não tenho nenhuma esperança. Não tenho medo de nada. Sou livre." Este é o epitáfio do poeta, novelista, dramaturgo e filósofo Nikos Kazantzakis, gravado em seu túmulo em Heraclion, na Ilha de Creta. Entre as suas principais obras, traduzidas para o português, destacam-se “O Cristo Recrucificado”, “A Última Tentação de Cristo”, “Zorba, o grego”, “Testamento para El Greco”, “Os irmãos inimigos”, “Toda Raba” e “O Pobre de Deus”.
(4) Escreveu cerca de vinte livros, distribuídos em ensaios filosóficos, romances, novelas, escrituras autobiográficas e peças de teatro. Uma das mais expressivas teóricas do movimento feminista, viveu com Sartre, o grande filósofo existencialista francês, com quem dividiu, sempre em desvantagem, a efêmera glória literária e filosófica.
(5) Teórica política, tida também como filósofa, judia alemã que emigrou para os Estados Unidos fugindo do nazismo. Autora de diversos ensaios, entre outros, “As origens do totalitarismo” e “Sobre a Revolução”. O comentário refer-se a outro dos seus livros, “A condição Humana”, publicado no final da década dos anos cinqüenta.
(6) Poeta natalense. Em 1914 fundou, juntamente com sua prima Carolina e outras jovens, a Revista Via-Láctea que seria a primeira feita por mulheres e dirigida ao público feminino, no Rio Grande do Norte. Esta revista circulou até o final de 1915 e cumpriu o importante papel de incentivar e divulgar a produção feminina do Estado. Colaborou em diversos jornais e revistas de seu tempo, como A Imprensa, A República e A União, do Rio de Janeiro; Revista Feminina e Revista Moderna, de São Paulo; Paladina do Lar, da Bahia; e Estrela, do Ceará, entre outras. Em Natal colaborou em A República, A Cigarra, Diário do Natal e Tribuna do Norte. Escreveu dois livros de poesias: Esmeralda e Roseira Brava.
(7) Pai do ilustríssimo Luis da Câmara Cascudo, foi o seu maior incentivador. Coronel da Guarda Nacional, foi comerciante, político, fundador e mantenedor do jornal “A Imprensa”, um dos dois periódicos existentes à época em Natal. Era, no dizer de Ticiano Duarte, “...uma espécie de “dono da cidade”. As sessões do cinema Royal só começavam com a presença do casal Francisco Cascudo - Donana. O mesmo ocorria, no cinema Polyteama, na Ribeira...”

PEDRO SIMÕES – Professor de Direito (aposentado). Escritor e Advogado

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