sexta-feira, 18 de junho de 2010
PAULO LOPO SARAIVA
AS REVELAÇÕES, A LOUVAÇÃO E A TESSITURA DO HOMEM
Talvez eu saiba muito pouco sobre Paulo Lopo Saraiva, mas o que sei é suficiente para incluí-lo numa galeria de tipos marcantes pela sua história, o seu modo de se conduzir na vida de relações e, sobretudo, pela obra que edificou.
Ocorre-me estar munido de um aparelho muito antigo que lembrava um binóculo, com uma haste que finalizava num suporte onde as fotografias eram postas e vistas através das lentes ganhando tridimensionalidade.
Sem nenhum esforço, rememoro as cenas que fixei do meu itinerário em demanda do meu amigo Paulo. Antes, porém, um depoimento que já o qualifica.
Primeira revelação
Soube, através da minha irmã, sua contemporânea na Faculdade de Direito, que nos anos de chumbo, pós-64, Paulo freqüentava as aulas fardado – era sargento do exército – e, embora não professasse a ideologia golpista, encarava desafiadoramente os remanescentes “esquerdistas”, que o hostilizavam pelo simples fato de ser militar.
Disse-me ainda a sua colega que ele era temido pelos anti-golpistas não pelo fato de ser militar pois o sabiam correto, incapaz de denunciar os colegas, mas pela sua ousadia e coragem pessoal.
Segunda revelação
Muito e muitos anos depois, testemunhei pela televisão, a cobertura de um júri no interior em que ele era defensor de um assassino que escapara do linchamento popular. A cena exibia a saída de Paulo do Tribunal do Júri, acompanhando o seu cliente acossado pela multidão. A guarnição policial acorreu para a proteção dos dois e Paulo, com um gesto, os dispensou e cruzou a praça pública em passo moderado, abrindo uma picada na multidão.
A cena lembrou-me de outro episódio.
O Brigadeiro Eduardo Gomes, um dos líderes da oposição ao Governo Vargas, dirigia-se à sua casa quando o seu veículo foi interceptado por uma manifestação popular em desagravo ao suicídio do Presidente. Forçado a descer do carro para completar o trajeto até a residência, teria, então, dito ao motorista: “Vamos andar numa marcha moderada, não tão lenta que pareça provocação, nem tão rápida que pareça medo”. E assim, foi abrindo clareira na multidão furiosa.
Terceira revelação
A primeira cena que me recordo é a de um jovem com aparência dinâmica, festejado por seus companheiros pela posse na Secretaria Municipal de Finanças. Um amigo comum me disse tratar-se de Paulo Lopo Saraiva, brilhante bacharel em direito. De fato fez uma gestão extraordinária que revelou vantagem para o erário municipal e para os contribuintes em geral: a receita tributária decuplicou e impôs-se a justiça fiscal.
Sempre tive referências da sua ascensão profissional e do sucesso como advogado, na defesa de questões polêmicas.
Depois, nos encontramos nos espaços acadêmicos da UFRN e UnP, ambos professores do Curso de Direito.
Mas, conheci-o mais intensamente quando fui candidato a Reitor da UFRN.
Quarta revelação
Ungido como primeiro colocado na lista sêxtupla a ser encaminhada à então Ministra da Educação, Professora Esther de Figueiredo Ferraz, a opinião pública formara a convicção de que eu não teria chances porque um dos candidatos ao cargo, o Professor Genibaldo Barros, contava com o apoio do grupo político dominante no estado, os Maia.
No entanto, apesar das evidências indicarem essa tendência, eu me irresignava. Procurei então, apoios alternativos que pudessem influir na decisão. Ex-reitores, Diretores de Centros da UFRN (lembro particularmente de Therezinha Almeida e Emanuel Lago), Dirigentes de instituições de ensino e entidades culturais...
Certo dia o Professor Francisco das Chagas Pereira me conduziu ao então Deputado João Faustino, acompanhado de um grupo de professores ligados ao parlamentar e este se comprometeu a nos ajudar. Era um reforço precioso, considerando-se a sua condição de Presidente da Comissão de Educação da Câmara Federal.
Fui, então, procurado por Paulo Lopo, que já se havia declarado partidário da minha campanha, e ele me informou que iria postular o apoio do senador Caros Alberto, á época vice-líder do governo, para a minha candidatura.
Dito e feito.
Noite alta rumamos no próprio carro de Paulo para um sítio onde Carlos Alberto repousava.
O senador recebeu meu amigo efusivamente, e, quando me distinguiu, formalizou-se. Paulo fez as apresentações devidas e Carlos Alberto observou, sem nenhuma cerimônia:
“É verdade que o senhor participou de um comício em Passa e Fica, de apoio à candidatura de Ulisses Potiguar?”
De fato, a pedido de Diógenes, irmão de Arian Cunha Lima, prefeito de Passa e Fica, em franca campanha pela eleição de Ulisses Potiguar, pedi votos para o adversário de Carlos Alberto, num palanque de que participaram diversos professores de UFRN.
Respondi afirmativamente.
Antes que o senador fizesse qualquer comentário, o meu amigo antecipou-se:
“Senador, Pedro Simões não conta. Sou eu, seu amigo e colaborador que vim lhe pedir apoio para o seu pleito de conquistar a reitoria da UFRN.”
Fez-se um silêncio embaraçoso. O político afagou inúmeras vezes a cabeleira, um tanto contrafeito, mas Paulo não arredou pé – olhava-o desafiadoramente, como o faz em certas ocasiões.
Carlos tentou ponderar, dar-se tempo: “Vamos analisar”. Paulo não se contentou. “Não tem o que analisar, é um pedido meu, pessoal, ou você atende ou não atende, não há meio termo”.
O recém-eleito senador sentia-se pouco à vontade. Depois soube que não gostava de ser pressionado.
“Tudo bem! Mas voltaremos a conversar – dirigia-se a mim – para o estabelecimento de certas condições”. Tentava equilibrar a sua posição ante a firmeza do seu colaborador.
Justiça se faça, o combativo senador lutou denodadamente, jogando todo o seu prestígio como vice-líder do governo no Congresso, para obter a nomeação, que chegou a ser cogitada, mas essa é outra história. Aproveito o espaço para registrar a minha gratidão a esse injustiçado político norte-rio-grandense, correto nos seus compromissos e aos laços de amizade.
Quinta revelação
Nesse ínterim, o meu amigo foi convocado a dar explicações ao então governador, de quem era Secretário de Governo, porque não se perfilhava com o candidato das forças governistas à Reitoria. Disse ao seu chefe que tinha um compromisso comigo, inamovível. Mas que o governador poderia dispor do seu cargo, que aliás era de provimento em comissão, e a sua exoneração talvez pudesse corrigir a suposta contradição.
Ficou tudo como estava.
Sexta revelação
De outra feita, fui procurado por uma série de amigos, quase todos colegas professores do curso de direito da UFRN, para formar uma chapa de oposição que concorreria às eleições para a diretoria da OAB. Lá estavam, entre outros, Jales Costa, Adilson Gurgel, Carlos Gomes, José de Ribamar Aguiar, José Correia de Azevedo, Honório de Medeiros (que dividiu comigo as diretrizes táticas) e Armando Holanda. Pretendiam que eu assumisse a coordenação do planejamento estratégico da campanha.
Sabendo da minha amizade com Paulo, pediram-me para que o persuadisse a se alinhar com a chapa em formação, pois sabiam-no ideologicamente comprometido com a diretoria situacionista. Disse-lhes que era uma empreitada difícil, considerando as posições irredutíveis do nosso amigo.
Exatamente como dissera, Paulo justificou-se alegando alinhamento automático com os nossos adversários.
Durante o processo de preparação da estratégia, elegemos alguns princípios que se prestavam a reforçar o merchandising eleitoral: a alternância de poder, já que o grupo que controlava a OAB permanecia no controle da instituição há mais de vinte anos; a consideração do voto direto também no pleito corporativo – advogando que a presidência seria ocupada pelo mais votado e, assim, sucessivamente, toda a diretoria.
Afinal, vivíamos o período de efeverscência pós-Ai-5, com a campanha pelas diretas sensibilizando a opinião publica.
Os situacionistas rejeitaram a proposta, que era coerente e politicamente correta, considerando-se o “Movimento pelas Diretas Já” que galvanizava o país. Vai daí que Paulo me procurou para apoiar a chapa de oposição, por questões de consciência, uma vez que o empolgava a coerência do nosso grupo, e a incoerência dos situacionistas em rejeitar essa possibilidade.
Ganhamos o pleito.
Depois, reativamos o Instituto dos Advogados do Brasil, capítulo do Rio Grande do Norte e fui escolhido como seu Presidente. Só reivindiquei uma posição – que Paulo Lopo fosse o meu vice.
A louvação
Portanto, se eu pudesse destacar os traços marcantes de Paulo, esses seriam a lealdade, a coerência, a combatividade e o arroubo, à parte os seus notórios méritos intelectuais, sobretudo a dedicação ao ensino jurídico e os lauréis acadêmicos.
Ele excede nessas virtudes, como eu posso atestar de ciência própria.
Não vou-me alongar no que já é de conhecimento público: a sua brilhante titulação acadêmica, Mestre, Doutor e Pós-Doutor em Direito, Professor de Direito Constitucional de algumas das mais importantes instituições de ensino superior do Estado, tendo já lecionado na Universidade de Brasilia, que reúne alguns dos melhores docentes do país.
Elevado por opiniões respeitáveis como as de Michel Temmer, Paulo Bonavides e Ives Gandra, para citar os mais recorrentes, e tendo como parceiros de estudos e de teses alguns dos mais renomados juristas internacionais a exemplo dos portugueses Gomes Canotilho, de Coimbra, e Jorge Miranda, de Lisboa e Friedrich Muller, da Alemanha, é, por tais méritos, titular de algumas das mais altas honrarias acadêmicas e profanas do nosso país.
A tessitura
Mas, quero tecer o Paulo idolatrado pelos alunos, por sua metodologia e pela amizade que estabelece com os discípulos, comparável ao professor interpretado por Robin Williams em “Sociedade dos Poetas Mortos”; o patrono disputado pelas lideranças da sociedade civil, socorro dos desvalidos sob ameaça do poder e dos poderosos, o amigo leal, o tribuno arroubado e, porque não, o homem fascinado por suas próprias conquistas.
É a capacidade de superação, a obstinação e a fidelidade às metas traçadas que dizem de Paulo e que inflam o seu orgulho. Com justeza. Afinal, quantos poderiam construir com as próprias mãos uma trajetória tão brilhante e tão inesperada como ele o fez?
Há quem atribua a Paulo um excessivo apego e incenso à própria imagem, um entoador de loas a si mesmo. Esses julgam as aparências. Não conhecem o Paulo original, louvam-se nas imagens refletidas nos diversos espelhos, sem compreendê-las, quais os mesmos fabricantes da silícia que conduziram Alice ao controvertido “país das maravilhas”.
Paulo foi mais um rebento de uma família numerosa e pobre, na distante Serra Branca, interior da Paraíba que tomou o caminho de outros tantos filhos pobres que decidiram ser alguém, contra todas as adversidades - o seminário, onde passou cinco anos, e depois, bafejado pelo excelente curso de humanidades, fez o curso de sargento no terceiro batalhão ferroviário, em Campina Grande permanecendo no exército longo tempo.
Nessa condição, fez o vestibular de direito e foi aprovado.
A estória de sua ascensão, curta assim, parece ter sido unção do destino. Ninguém é capaz de avaliar os sacrifícios que o nosso perfilado teve de fazer, as renúncias, as transigências e, sobretudo, a obstinação, que é outra de suas características, para chegar até onde chegou.
Tenho para mim que até hoje Paulo ainda tem dúvidas das suas conquistas, por isso, ao invés de beliscar-se, tal como o incrédulo, as relata, para ouvir o eco das contraditas ou das concordâncias. Só assim ele se sente confortável, porque sabe que não se trata de um sonho.
E é difícil alguém acostumar-se às culminâncias, saindo de planícies tão estéreis e longínquas como desestimulantes.
Ocorre-me uma fantasia: o nascimento de um corpo, emergente de um buraco negro ou de um quasar, que de repente se descobrisse intensamente brilhante, reluzente e poderoso - uma estrela. Se tivesse consciência e pudesse refletir sobre a sua inesperada metamorfose, a que conclusões chegaria? Com certeza o alumbramento, a que se seguiria o envaidecimento e afinal, a onipotência.
Não refuto os vaidosos, sobretudo os de linhagem intelectual. Eu os compreendo e os justifico. A síndrome de Narciso entre os que operam com a mente, não é a mesma dos cultores do físico. Não valorizam a própria concepção material, mas a gênese de um novo ser, sutil, fluídico, poderoso porque é animista, parto laborioso de hermafrodita, o próprio responsável pela energia vital: “Penso, logo existo”.
Ninguém enxerga o Paulo-Paulo, sem o Lopo nem o Saraiva. O que está subjacente aos cabelos ralos, por trás dos óculos, no peito infante do menino que debulhava o caminho nas sandálias rotas no rumo da escola, triunfante, a tabuada na ponta da língua, o ABC das cartilhas decodificado, a salvo portanto da palmatória. O menino da bola de meia no pátio da escola, orgulho da Professora Teresa de Souza, do Grupo Escolar de Serra Branca, vivo, inteligente, já com inclinação para a liderança.
O menino-adolescente seminarista, encantado com os mistérios da Santissima Trindade, da divina concepção, um tanto confuso com os dogmas religiosos, mas satisfeito com Agostinho e Tomás de Aquino. Depois, a disciplina e a hierarquia aprendidas no regime militar. Afinal, a descoberta do direito, quando os horizontes deixaram de ser apenas geográficos para conquistar foros de infinito.
Não foi curta, nem fácil, a trajetória do Paulo-Paulo, antes do Lopo e do Saraiva. Aliás, ninguém lhe disse que seria. Ao contrário, todos duvidavam que chegasse ao topo, não que duvidassem da sua capacidade de luta, mas porque se acostumaram à fatalidade da pobreza como predestinação invencível.
O que ninguém sabia, nem desconfiava, era que Paulo nunca aceitou a fatalidade nem a predestinação como o norte da sua vida. Acreditava no esforço, na obstinação, e na formulação que recebera do pai quando tratava da forja do futuro: trabalho e disciplina. Ajuntou a esse binômio, timidamente, e depois com exaltação, a fé. Aprendeu a utilizar as duas forças primárias como alavanca e a terceira como motivação.
Como sempre faço nos perfis que traço, procuro semelhança com personagens da literatura. Encontro em Ariosto (século XVI) um protótipo: Orlando, o furioso. Não exatamente o desvario do herói, depois de perder a sua amada Angélica, mas o “em torno” do épico, a sua motivação, o mito do cavaleiro errante, a cultura da contradição a qual também caracterizou alguns trabalhos de Erasmo e Rabelais justificada pela sede de mudanças que caracterizou o período compreendido entre o medievalismo e o renascimento. Embora Orlando tenha sido apenas um dos muitos personagens do monumental poema, foi o mais marcante. Sem ele, Ariosto perderia o título e o herói de todas as batalhas.
É tão importante a obra, que cerca de três séculos mais tarde, Hegel considerou que as suas muitas alegorias e metáforas não serviam meramente para refutar o mito da cavalaria, mas também para demonstrar a falácia dos sentidos e julgamento humanos.
Misto de Cosme de Farias e Sobral Pinto, condimentados, não é por acaso que Paulo se destaca pela originalidade e pela coerência com as suas origens. Por isso abraçou as razões doutrinárias do Direito das Ruas, do Direito Alternativo, com a sua tese “Participação Popular”.
Pedro Simões – Professor de Direito aposentado. Escritor e Advogado.
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