PADRE MONTE, DOM JOSÉ E O LEMA
DA ANRL
Padre João Medeiros Filho
Por
sugestão de nosso confrade e amigo Professor Luiz Eduardo Brandão Suassuna,
compartilhamos este texto sobre o inesquecível Padre Luiz Gonzaga Monte. Descendente
de uma família pernambucana, nasceu em Vitória de Santo Antão, aos 3 de janeiro
de 1905. Padre Monte e Dom José Pereira Alves, dois filhos ilustres da antiga
Mauricéia (Mauritiustad), influenciaram
a história cultural e literária do Rio Grande do Norte. Não se pode esquecer o
Pernambuco das lutas revolucionárias e libertárias, de mãos dadas com os
potiguares. Dentre eles, destaca-se Frei Miguelinho, patrono da cadeira nº 01
de nossa Academia. O frade carmelita foi professor do Seminário de Olinda,
fundado por Dom Joaquim de Azerêdo Coutinho. A instituição era um centro de
efervescência intelectual, em que debatiam os jansenistas, ultamontanistas e
defensores do Catecismo de Montepellier. Tal entidade de formação eclesiástica
foi a Alma Mater de Dom José Pereira,
terceiro bispo diocesano de Natal (de 1923 a 1928), depois transferido para o
bispado de Niterói. Era conhecido no Recife por Deão Pereira (presidente do
cabido metropolitano). Exerceu também as funções de reitor da instituição onde
estudou. Ainda jovem, com pouco mais de trinta anos, foi eleito membro da
Academia Pernambucana de Letras (posteriormente das academias fluminense e
petropolitana) e de outras agremiações literárias e científicas. Em Natal, tornou-se
um grande amigo e admirador do Cônego Luiz Gonzaga Monte, que foi por ele
ordenado e escolhido para ser seu secretário particular. Havia empatia
intelectual e literária entre ambos.
Sobre Padre Monte destacaremos duas referências: a
primeira da lavra do ilustre prelado que o ungiu sacerdote:
O discurso [no dia de sua ordenação] por ele improvisado foi admirável, impecável, primoroso, tanto quanto à
forma como pelos conceitos. Confesso que tive, nesse dia, como em nenhum outro,
a revelação da extraordinária capacidade de Monte.
A segunda vem do escritor potiguar Nilo Pereira, imortal
da Academia Pernambucana de Letras e da nossa ANRL:
Foi o Padre Luiz
Gonzaga Monte o orador que Natal tão intensamente aplaudiu, podendo filiar-se
aos Bossuets e aos Vieiras. O homem recolhido, o pesquisador solitário, o
humanista admirável, capaz de valer sozinho uma Academia.
O Cônego Monte lia, comentava e sugeria respeitosamente
alterações nos escritos de autoria do seu bispo, que seriam publicados em
jornais e periódicos especializados de Natal e alhures. Dom José, quando assumiu
o bispado de Niterói, chegou a declarar: Pensei
muito (até fui tentado) em trazer Monte comigo. Mas, não seria
justo privar o RN da presença de seu gênio, ocasionando tamanha orfandade.
Em trabalhos dirigidos aos eclesiásticos, o então bispo do
Rio Grande do Norte falava constantemente das academias de letras e sua
importância na vida da Igreja. Não media palavras para aconselhar seus padres a
ter uma profundidade intelectual e literária, ao lado da mística e espiritualidade.
Na antiga capital fluminense, incentivou sacerdotes a ingressar nas academias
de Niterói e Petrópolis. No RN, não fez por menos. Não teve a felicidade e a
graça de ver de perto, mas veio a saber, vibrou e se alegrou muitíssimo com a
entrada de seu estimado amigo e colaborador Padre Monte na Academia
Norte-Rio-Grandense de Letras.
Nessa instituição, a influência católica e clerical é acentuada, o que
se pode notar pelos patronos de seis cadeiras. Isto é registrado por Bruna
Rafaela de Lima Lopes, doutora em História pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos – Unisinos (São Leopoldo/RS) e docente do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte – IFRN. Assim afirma
aquela pesquisadora:
O padre Luiz
Monte, principal intelectual católico natalense nas décadas de 1930 e 1940,
teve uma participação decisiva na formação da ANRL..., ao lado do seu principal
idealizador Luís da Câmara Cascudo. (Cf.
Academia dos católicos: patronos e primeiros acadêmicos da Academia
Norte-Rio-Grandense de Letras in
Revista Eletrônica História em Reflexão: Vol. 10 n. 20 – UFGD – Dourados,
jul/dez – 2016).
Cabe salientar que o incentivo episcopal de Dom José
Pereira Alves marcou outros presbíteros diocesanos potiguares. Seria desmerecedor
não citar a iniciativa de Monsenhor José Alves Ferreira Landim, como
descreveremos a seguir. Alagoano de nascimento, natural de Pão de Açúcar, inicialmente
pertenceu ao clero olindense. Aqui exerceu seu sacerdócio, tendo sido colega de
seminário de Dom José, que o trouxe para este bispado junto com o Padre
Ambrósio Silva. Este marcou a vida pastoral de Acari, Cruzeta, Jucurutu e
Florânia.
Imbuído da beleza da vida das academias, Monsenhor Landim
fundou em Natal a Academia Potiguar de Letras, em 1956, extinta anos depois. Se
a professora Bruna Rafaela denomina a nossa ANRL, em suas origens, academia dos católicos, é porque não teve
ainda a oportunidade de analisar os primórdios da Academia Potiguar de Letras.
Monsenhor Landim, seu organizador, convidou nove eclesiásticos para compor os
quadros daquela agremiação cultural e literária. Encabeça a lista o Arcebispo Metropolitano
de Natal, Dom Marcolino Esmeraldo de Souza Dantas. Este escolheu como patrono
Dom José Thomaz Gomes da Silva, homem culto e letrado, o segundo potiguar a ser
elevado à dignidade episcopal (integrante do clero norte-rio-grandense), como primeiro
bispo da diocese de Aracajú (de 1911-1948).
Monsenhor Landim convidou ainda Cônego Eymard L´Éraîstre
Monteiro (secretário do arcebispado), Monsenhor Paulo Herôncio de Melo (pároco
de Currais Novos) e Cônego Nivaldo Monte para pertencer à novel academia. Foram
instados a ingressar na APL os presbíteros Emerson Negreiros, Luiz Wanderley,
Bianor Aranha e Ulysses Maranhão, os quais declinaram da honraria. Por sugestão
de Dom Marcolino, juntou-se a este grupo o Comendador Ulysses Celestino de Góes,
pois, segundo o alvitre do metropolita potiguar, enquanto dignitário pontifício,
isto é, Comendador da Ordem de São Silvestre, merecia ser incluído no rol dos
membros eclesiásticos, como se clérigo fosse.
Convém registrar que a APL não dispunha de sede própria. Reunia-se
em instituições religiosas católicas, notadamente no Ginásio São Luiz (de
propriedade de Cônego Eymard), no auditório do Colégio Marista e nas
dependências da nova catedral natalense (que estava sendo construída, situada
na outrora Praça Pio X, 335) com aquiescência de Dom Eugênio de Araújo Sales, então
bispo auxiliar. Isso configura forte vínculo eclesiástico.
A vida literária e a produção científica de Padre Monte mereceram
com justiça da parte de nosso confrade Jurandyr Navarro um estudo acurado e um
tratamento à altura da produção intelectual do saudoso Padre Monte. Dentre
tantas obras, importa destacar a Antologia
do Padre Monte (em dez volumes). Gostaríamos de tecer algumas considerações
sobre as quatro sugestões de autoria do preclaro sacerdote para o lema de nossa
Academia.
Ad lucem versus.
Sugestão acolhida e adotada, como dístico de nossa ANRL. É passível de várias
traduções, tais como: voltado para a luz,
em direção à luz, em busca da luz. Virgílio possui algo semelhante: versus
ad sidera (voltado para as
estrelas ou o Infinito). Padre Monte, homem de vasta e profunda erudição,
além de outras ciências e de seu largo conhecimento da língua do Lácio e outros
idiomas, era um estudioso de astronomia e mineralogia. O sábio sacerdote era
também pesquisador sobre tungstênio (scheelita) e suas minas no Seridó. Viveu
com seus pais em Currais Novos, onde cedo se interessou pela mineralogia. Na
década de 1930, foi vigário por alguns meses em Caicó, motivo pelo qual
estendeu suas pesquisas em todo o Seridó. Embora haja analogia com Virgílio, o
lema adotado pela ANRL tem sobretudo a marca e a influência do Evangelho,
quando cita a Luz, em alusão a uma das alegorias do evangelista João, em que
Cristo se define: Eu sou a luz do mundo
(Jo 8, 12). Não é desmedido nem despropositado afirmar que o referido dístico
acadêmico se aproxima da frase evangélica. Há quem queira também relacionar o
lema com um velho axioma cristão medieval Ad
lucem per crucem (Pela cruz para a
Luz).
A segunda sugestão Ducitur in altum pode ser traduzida
por caminhar para o alto. O termo altum,
em latim, tem dois sentidos: alto e profundidade. Nota-se aqui a presença do
Evangelho de Lucas (cf. Lc 5, 4), quando Cristo manda seus apóstolos, após uma
noite inteira de pesca infrutífera, jogar as redes mais para as profundezas: Duc in altum. Nestas duas sugestões,
percebe-se a influência da tradição eclesiástica dos escudos e heráldicas episcopais
e abaciais, cujos lemas consistem geralmente de uma expressão latina composta
de três palavras.
A terceira possibilidade de um eventual dístico acadêmico
distancia-se do contexto religioso-clerical. No entanto, sofre influência da
poética latina: Viteus lumi, sidera corpe, que poderá numa tradução portuguesa
se dizer: cheio (literalmente
embriagado) de luz, chegar-se-á às
alturas (literalmente ao âmago das estrelas). É mais uma analogia a
Virgílio, cujo termo sidera costuma aparecer em sua obra poética.
Apesar da inexistência explícita de conotação e elementos religiosos nessa
sugestão do Padre Monte, verifica-se a influência do poeta Virgílio em sua
formação cultural. Nesta versão, Monte não
segue a tradição dos distintivos de dignitários eclesiásticos compostos de três
vocábulos. Porém, a métrica latina com suas sílabas breves e longas, ao escandir
versos, é uma tônica das duas últimas sugestões de Padre Monte. Por último,
cabe informar a incidência do vocábulo sidera
nos versos de Virgílio presente em dísticos, lemas e insígnias de instituições
culturais e literárias. Assim, a Academia Potiguar de Letras tinha como seu
lema Ad
sidera semper (sempre para as
alturas), texto da lavra de outro grande latinista potiguar Dom José
Adelino Dantas, segundo bispo diocesano de Caicó (RN).
A quarta e última
sugestão consiste nos versos latinos Tellus premat certus artus, trahant sidera
verticem, cuja tradução mais
livre seria: Firma os pés na terra para
alcançar as estrelas. Padre Monte revela mais uma vez a sua verve poética,
oferecendo-nos perfeitos versos alexandrinos ou duodecassilábicos (com as
contrações e ablações de sílabas, características do versejar). Constata-se na referida
sugestão analogia a uma ode de Horácio: Os
pés na terra e os olhos voltados para o Infinito. O Profeta Isaías escreveu
algo semelhante: Erguei os olhos para o
alto (Is 40, 26). Padre Monte transparece a sua formação humanística,
cristã e eclesiástica. Ele transitava do sagrado ao profano, do coloquial ao
científico, sem proselitismo, unindo sempre fé e ciência.
É importante lembrar que, após seis dias da fundação da ANRL, Padre Monte escreveu um extenso e
profundo artigo em A República,
intitulado Nossa Academia de Letras,
perorando com os seguintes termos:
O homem de letras precisa
mergulhar na corrente da vida e nunca se isolar na anacrônica torre de marfim.
Bem sabemos que a arte tem sua finalidade própria, e nesse caso é soberana, mas
o artista é humano, e o fim do homem supera e governa o fim da arte.
[…] Já se vê que não estamos aqui para bater palmas a qualquer literato
nem defender qualquer literatura. Releva dizer que o primado do Espírito que
defendemos contra a supremacia da Matéria – com todo o seu cortejo tecnicista e
economista – não se contenta com o simples prestígio da inteligência. Há
realidades espirituais que ultrapassam os limites da razão.
Este trecho encantava Dom João Batista Portocarrero Costa, um dos grandes
expoentes da oratória sacra que passou pelo Rio Grande do Norte. Foi o segundo
bispo de Mossoró, ex-aluno de Dom José Pereira Alves, quando reitor do
Seminário de Nossa Senhora da Graça, do Alto da Sé, em Olinda. E consoante
alguns padres da Arquidiocese de Niterói, seu nobre antístite sempre relia esse
artigo, citando-o em palestras nos retiros para padres e religiosos. Conta-se
que foi um dos últimos textos por ele lidos. Cabe informar que o escrito chegou
às suas mãos por meio de Dom Portocarrero Costa, que por sua vez o recebeu do
seu amigo e futuro colega no episcopado, Dom Nivaldo Monte.
Dom José Pereira Alves tinha a ANRL como parte de sua vida e seu episcopado, considerava-se um de seus membros
na pessoa do santo e sábio Cônego Monte, segundo confidências ao Cardeal
Dom Jaime de Barros Câmara. Este fora o primeiro bispo de Santa Luzia, de Mossoró
e antecessor de Dom João Portocarrero.
De acordo com a professora Bruna Rafaela, aqui
anteriormente aludida, em seu brilhante estudo intitulado Cientista, sábio e santo: Padre Luiz Gonzaga Monte na interpretação
cascudiana, Luís da Câmara Cascudo assim se expressou: Em Padre Monte existia um cientista, homem de letras e, sobretudo, um
sentimento incomum de humildade e bondade. Nesse sentido, declarou ainda Cascudo,
o qual conviveu de perto com Padre Monte, antes da fundação da ANRL e durante
seis anos, após a sua criação:
O cônego Luiz Gonzaga Monte aprendeu sozinho a ser sábio. Foi a cultura
mais ampla que possuímos... Era um ‘poço de ciência’ com raros meios para
trazê-la aos nossos lábios. Monte era modesto... Sua vida foi, como dizia Luís
de Camões, ‘um solitário andar por entre as gentes’...”.
Se aqui estivesse fisicamente
entre nós, todos teriam para onde correr, a quem escutar, a quem seguir sem
exigir dele nenhuma palavra. Bastaria olhá-lo e senti-lo, refletindo Deus.
Segundo ex-alunos e coetâneos, Padre Monte confessava que gostaria de terminar
seus dias num mosteiro trapista. Os monges dessa ordem religiosa não
falam. Apenas escutam o silêncio de Deus. Como Exupéry afirmava, no silêncio alguma coisa irradia. Outrossim
se expressava Santa Teresa d´Ávila, o
silêncio é o eco tácito do Eterno.
Padre Monte iniciou sua vida em plenitude, aos 28 de
fevereiro de 1944, acreditando nas palavras de Santo Agostinho: Mors vere dies natalis hominis (a morte é o verdadeiro natalício do ser
humano). Colegas, confrades e amigos – dentre eles seu polemizador maior: o
médico e acadêmico Esmeraldo Homem de Siqueira – afirmam que no quarto do
hospital, perto do seu leito de morte, havia uma janela. Minutos antes de seu
último átimo, inclinou a cabeça para ela, com os olhos fitos no céu, sidera
verticem et ad lucem, como escrevera em suas sugestões de lema para a
nossa Academia!
Nada melhor que terminar com as palavras de Dom Nivaldo
Monte, proferidas na missa exequial de seu irmão, o Cônego Luiz Gonzaga Monte:
Morreu, mas não
se aniquilou. Vive nas almas por ele buriladas, em cada elemento da verdade por
ele conhecido, em cada parcela de virtude por ele amada, em cada trabalho por
ele realizado. Vive na verdade que viceja nas inteligências por ele
desbravadas. Não, ele não se afastou! Está presente, porque a sua morte
cristalizou dentro de nossa alma a presença de seus ensinamentos na intensidade
de uma lembrança amiga!
João Medeiros Filho é sacerdote católico. Membro da
Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL, Academia Mossoroense de Letras –
AMOL, Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN.
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