COISAS DO TREM DE PRATA
Tomislav R. Femenick – Jornalista
O início dos anos 1970, quando fui morar
em São Paulo pela segunda vez, fundei a Entreprise Press, uma agência
jornalística que fornecia notícias, crônicas e ”conteúdos” para mais de
quarenta jornais do país; de Manaus a Porto Alegre. Era uma época diferente da
de hoje. O grande problema foi como montar a logística para fazer as matérias
chegarem aos jornais. Tudo era difícil, não havia internet e o grande
instrumento de comunicação – restrito para somente algumas empresas – era o
teletipo; e essa foi a nossa grande arma.
Por
indicação do meu amigo Dorian Jorge Freire, fui buscar o jornalista Fausto
Cesar Alcazar, que trabalhava como “freelance” nas revistas Veja e Realidade,
da editora Abril, para se juntar a nossa equipe. Como se diz, “foi um grande
achado”, principalmente no setor de “conteúdo”, algo relativamente inusitado na
imprensa brasileira. Tradicionalmente, as agências nacionais distribuíam quase
que somente notícias prontas e nenhuma fornecia conteúdos, ou seja, não
forneciam os tópicos que compõem as notícias, tais como as fontes, as
divergências de intepretações, o significado e mesmo a sua importância em
contextos diversos, de tal forma que, em jornais diferentes, o mesmo fato poderia
aparecer de forma diferente, conforme a sua interpretação, dando relevância latente às palavras.
O Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, e a
Folha de São Paulo, na capital paulista, eram os nossos maiores clientes de
“conteúdos”, e isso exigia reuniões frequentes entre nós e as chefias de
redação desses jornais, pois se as notícias são fluidas, os “conteúdos” são
mais que isso, são voláteis. Depois das matérias serem divulgadas, elas despertam
pouco ou nenhum interesse do público, a não ser que haja fatos novos que lhes
deem substância e continuidade.
O
Jornal do Brasil era o cliente que mais exigia reuniões para discutir os
conteúdos, mesmo que nunca tenha tido êxito nos seus questionamentos. Por conta
dessas ocorrências, quase que passamos a morar nos aeroportos de Cumbica e
Santos Dumont. Não suportávamos mais o barulho das turbinas da Ponte Aérea São
Paulo-Rio de Janeiro-São Paulo, os cafés frios e os pães de queijo amassados e
caros, vendidos nas áreas de espera, o ambiente gélido da madrugada nos
aeroportos, vez que as reuniões sempre eram marcadas para as primeiras horas do
expediente da manhã.
Eis
que descobrimos o serviço ferroviário chamado de Trem Santa Cruz (depois de Trem
de Prata), que fazia o mesmo percurso Rio-São Paulo-Rio. Mais barato e com
lampejos de luxo. Destinados aos passageiros, havia vagões dotados de cabines
com dormitórios e um carro-restaurante, tudo servido por cerca de vinte
tripulantes. Experimentamos uma vez e logo o adotamos como o nosso meio de ir e
vir entre as duas cidades. Logo ficamos conhecendo os outros passageiros
habituais. Havia Júlio, um alegre e comunicativo representante comercial, o
padre Alberto, Mussum dos trapalhões, Dona Arlete, uma senhora dona de uma
confecção e outros mais. Mussum ia dormir logo depois do jantar. Com os outros
ficávamos conversando e, vez por outra, jogando um biriba despretensioso,
apostando caroços de feijão, pois se convencionou que era proibido jogar a
dinheiro. Um dia ficamos sabendo (dito pelo colega que o substituiu) que Júlio
tinha ficado doente de meningite, coisa greve mesmo, a ponto de ter recebido a
extrema-unção. Só estavam esperando a sua morte.
Meses
depois ele reapareceu no trem. Magro, trazendo na face o resultado da doença,
mas ainda alegre e conversador. Contou-nos sobre os dias que esteve
hospitalizado, as dores horrendas e o medo de morrer. Em seguida perguntou
sobre o padre Alberto, pois queria pedir-lhe um favor. Logo em seguida, como se
fosse numa deixa de teatro, o padre Alberto entrou no vagão-restaurante,
dirigiu-se ao nosso amigo e o abraçou. Júlio, como bom brincalhão que era,
disse-lhe.
– Padre dá para anular a extrema-unção, que me
deram? Eu desisti de morrer. Pelo menos por enquanto.
Tribuna do Norte. Natal 12 out. 2022.
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