PRESSIONADA
POR NÃO TER PELE NEGRA, CANTORA ENTREGA CARTA E RENUNCIA PAPEL PRINCIPAL NO
MUSICAL “DONA IVONE LARA – UM SORRISO NEGRO”
Francisco Alves C. Sobrinho (Jornal MINHO DIGITAL - Portugal)
A cantora Fabiana Cozza, grande intérprete,
admiradora e amiga da homenageada, renuncia ao papel de Dona Ivone Lara,
agredida pelo fato de não ter a pele negra.
Eis a carta de Fabiana Cozza,
ao renunciar ao papel de homenagem à falecida cantora brasileira Dona
Ivone
Lara no musical "Dona Ivone Lara - Um sorriso negro", que estava
programado para ser lançado brevemente no Rio de Janeiro e excursionar
pelo Brasil.
"Fabiana Cozza dos Santos, brasileira
Nascimento: 16 de janeiro de 1976
Mãe:
Maria Inês Cozza dos Santos, branca
Pai:
Oswaldo dos Santos, negro
Cor
(na certidão de nascimento): parda
Aos irmãos:
O
racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro.
Renuncio hoje ao papel de Dona Ivone Lara no musical “Dona Ivone Lara – um
sorriso negro” após ouvir muitos gritos de alerta – não os ladridos raivosos.
Aprendo diariamente no exercício da arte – e mais recentemente no da academia,
sempre com os meus mestres - que escuta é lugar de reconhecimento da existência
do Outro, é o espelho de nós.
Renuncio
porque falar de racismo no Brasil virou papo de gente “politicamente correta”.
E eu sou o avesso. Minha humanidade dói fundo porque muitas me atravessam.
Muitos são os que gravam o meu corpo. Todas são as minhas memórias.
Renuncio
por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu
nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos.
Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de
perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar
pensamento por horas.
Renuncio
porque vi a “guerra” sendo transferida mais uma vez para dentro do nosso ilê
(casa) e senti que a gente poderia ilustrar mais uma vez a página dos jornais
quando ‘eles’ transferem a responsabilidade pro lombo dos que tanto chibataram.
E seguem o castigo. E racismo vira coisa de nós, pretos. E eles comemoram
nossos farrapos na Casa Grande. E bebem, bebem e trepam conosco. As mulatas.
Renuncio
em memória a todas negras estupradas durante e após a escravidão pelos donos e
colonizadores brancos.
Renuncio porque sou negra. Porque tem sopro suficiente dizendo a hora e o lugar
de descer para seguir na luta. É minha escuta de lobo, de quilombola. Renuncio
pra seguir perseguindo o sol, de cabeça erguida feito o meu pai, minha mãe
(branca), meus avós, meus bisavós, tatas...
Ao
lado de vocês, irmãos.
Renuncio
porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser a de outra
artista, mais preta do que eu. Renuncio porque quero um dia dançar ao lado de
todo e qualquer irmão, toda e qualquer tom de pele comemorando na praça a nossa
liberdade.
Renuncio
porque respeito a família de Dona Ivone Lara: Eliana, André, seu pai e todos os
parentes e amigos que cuidaram dela até os 97 anos e tem sido duramente
constrangidos por gente que se diz da luta mas ataca os iguais perversamente.
Renuncio pelo espírito de Dona Ivone que ainda faz a sua passagem e precisa de
paz.
Renuncio
porque quero que este episódio sirva para nos unir em torno de uma mesa, cara a
cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade para todos nós.
Renuncio
porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu, também
tenham o direito de serem respeitados como negros.
Renuncio
porque tenho alma de artista e levo amor pras pessoas. Porque acredito num
mundo feito de gente e afeto.
Renuncio
porque não tolero a injustiça, o desrespeito ao outro, o linchamento público e
gratuito das pessoas, descabido, vil, sem caráter, desumano.
Renuncio
em respeito à direção e produção do espetáculo que tanto me abraçou, em
respeito ao elenco que agora se forma e que, sensível a tudo, lutou por seu
espaço e precisa trabalhar e criar em silêncio.
Renuncio
por amor aos meus amigos artistas, familiares, irmãos que a vida me deu que
também se entristecem, mas não se acovardam diante dos covardes.
Renuncio
porque sou livre feito um Tiê, porque cantarei hoje, aqui, lá e sempre à
senhora, Dama Dourada, minha amiga e amada Dona Ivone Lara.
Renuncio
porque, como escreveu meu amado amigo Chico Cesar, “alma não tem cor”. E a
gente chega lá.
Fabiana Cozza"
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