segunda-feira, 16 de janeiro de 2017


Os momentos de lazer propiciam um reencontro com o nosso mundo interior, com o nosso “eu” de velhas jornadas, que passamos muito tempo sem ver, ao ponto de não termos mais certeza sequer de que ele existe. Pois a vida nos torna uma contrafação de nós mesmos: a “persona” construída para abrigar a nossa imagem projetada pelos outros e a impossível imagem que desejaríamos ter. Por isso, durante os veraneios afluem tão fortemente os resíduos de um tempo redescoberto. Por exemplo, ao colocar o pé na areia antevejo o reencontro que vou ter com Varela Barca. Conversaremos sobre política e a vida jurídica da província. Temos a convicção de que nossos critérios e princípios éticos coincidem. Não nos inibe, então, o receio de expor livremente nossas opiniões. Muitas vezes esses passeios compensam extensos períodos em que pouco nos vemos, absortos na vida profissional e familiar. Mas, ao começar a minha caminhada, procurei inutilmente o meu amigo no lugar onde sempre nos encontrávamos. Na verdade, ele deixou de ali estar faz muito tempo, pois morreu prematuramente. E ainda assim eu tinha a expectativa de que iria revê-lo. Meus passos seguiram a esmo, como se procurassem um caminho de amizade inexistente. Esse caminho só existe agora na minha memória.
Quando alguém passou na frente da minha casa e me acenou, tive, momentaneamente, a impressão de que era o médico João Bosco. E que ele poderia sentar-se à mesa ao meu lado para bebermos e conversarmos sobre coisas alegres e bem-humoradas, como sempre fazíamos. Bosco tinha uma capacidade de doar-se aos amigos que destoava desse ambiente social de vaidades e rivalidades irracionais. Era um grande companheiro das reuniões descontraídas de veraneio. Lamento que minha voz não possa mais alcançá-lo para o convite de uma rodada de uísque: um enfarte retirou-o de repente e para sempre da nossa convivência. Apesar disso, parece-me ouvi-lo dizer: “Pois é, estou de volta”, como fazia ao retornar de um chamado médico, reintegrando-se ao grupo de amigos.
E como posso faltar à noite ao compromisso que assumi com o poeta Augusto Severo Neto e Lucinha? Márcio Marinho irá com o seu violão. E ouviremos bossa nova, fados, canções francesas e italianas. Augusto dirá poemas seus e dos grandes poetas nacionais. Pois a casa de Augusto é o mais agradável recanto de boas conversas, belas histórias de viagens, música e poesia, que ilumina o veraneio. A casa é como é. E ele não pretende mudá-la em nada. De fora, uma casa de pescador. Por dentro, um museu de quadros e objetos de arte. Só o talento e o amor de Augusto e Lucinha tornam a casa um lugar que transfigura o tempo e o espaço: quando lá se entra, o tempo e o espaço ensaiam uma dança de velhos e cansados parceiros que resolveram mudar de papel – o tempo vira espaço e o espaço tempo. Perde-se a noção de quando se entrou, perde-se a noção de onde se está. O tempo é o espaço da casa e o espaço é o tempo em que lá permanecemos. Mas o que posso fazer se Augusto e Márcio deixaram definitivamente vazias, insípidas, monótonas as nossas noites de veraneio? Apenas o mar é exatamente o mesmo, indiferente à dor da saudade de quem se demora a contemplá-lo.

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