Os momentos de lazer propiciam um reencontro com o nosso mundo
interior, com o nosso “eu” de velhas jornadas, que passamos muito tempo
sem ver, ao ponto de não termos mais certeza sequer de que ele existe.
Pois a vida nos torna uma contrafação de nós mesmos: a “persona”
construída para abrigar a nossa imagem projetada pelos outros e a
impossível imagem que desejaríamos ter. Por isso, durante os veraneios
afluem tão fortemente os resíduos de um tempo redescoberto. Por exemplo,
ao colocar o pé na areia antevejo o reencontro que vou ter com Varela
Barca. Conversaremos sobre política e a vida jurídica da província.
Temos a convicção de que nossos critérios e princípios éticos coincidem.
Não nos inibe, então, o receio de expor livremente nossas opiniões.
Muitas vezes esses passeios compensam extensos períodos em que pouco nos
vemos, absortos na vida profissional e familiar. Mas, ao começar a
minha caminhada, procurei inutilmente o meu amigo no lugar onde sempre
nos encontrávamos. Na verdade, ele deixou de ali estar faz muito tempo,
pois morreu prematuramente. E ainda assim eu tinha a expectativa de que
iria revê-lo. Meus passos seguiram a esmo, como se procurassem um
caminho de amizade inexistente. Esse caminho só existe agora na minha
memória.
Quando alguém passou na frente da minha casa e me
acenou, tive, momentaneamente, a impressão de que era o médico João
Bosco. E que ele poderia sentar-se à mesa ao meu lado para bebermos e
conversarmos sobre coisas alegres e bem-humoradas, como sempre fazíamos.
Bosco tinha uma capacidade de doar-se aos amigos que destoava desse
ambiente social de vaidades e rivalidades irracionais. Era um grande
companheiro das reuniões descontraídas de veraneio. Lamento que minha
voz não possa mais alcançá-lo para o convite de uma rodada de uísque: um
enfarte retirou-o de repente e para sempre da nossa convivência. Apesar
disso, parece-me ouvi-lo dizer: “Pois é, estou de volta”, como fazia ao
retornar de um chamado médico, reintegrando-se ao grupo de amigos.
E como posso faltar à noite ao compromisso que assumi com o poeta
Augusto Severo Neto e Lucinha? Márcio Marinho irá com o seu violão. E
ouviremos bossa nova, fados, canções francesas e italianas. Augusto dirá
poemas seus e dos grandes poetas nacionais. Pois a casa de Augusto é o
mais agradável recanto de boas conversas, belas histórias de viagens,
música e poesia, que ilumina o veraneio. A casa é como é. E ele não
pretende mudá-la em nada. De fora, uma casa de pescador. Por dentro, um
museu de quadros e objetos de arte. Só o talento e o amor de Augusto e
Lucinha tornam a casa um lugar que transfigura o tempo e o espaço:
quando lá se entra, o tempo e o espaço ensaiam uma dança de velhos e
cansados parceiros que resolveram mudar de papel – o tempo vira espaço e
o espaço tempo. Perde-se a noção de quando se entrou, perde-se a noção
de onde se está. O tempo é o espaço da casa e o espaço é o tempo em que
lá permanecemos. Mas o que posso fazer se Augusto e Márcio deixaram
definitivamente vazias, insípidas, monótonas as nossas noites de
veraneio? Apenas o mar é exatamente o mesmo, indiferente à dor da
saudade de quem se demora a contemplá-lo.
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