quinta-feira, 22 de setembro de 2016

   
Lívio Oliveira
22 de setembro às 08:54
 
A minha alma antiga*

(Lívio Oliveira)

São aquelas almas antigas as que nos alimentam os dias na cidade. E as noites escondidas entre ruas e becos infinitos em intraduzíveis paralelepípedos e os sons que neles ricocheteiam. São elas, sim. Incrustadas em homens e mulheres que se movem freneticamente no tempo, não somente em uma direção. Suas inquietudes produzem perplexidades e estupores necessários. A inventividade e a lucidez criativa se conciliam à tradição de pensamento e ambas explodem numa cena nova e, juntas, formam a crença que revolve e atiça. Almas antigas são almas dispostas ao passo firme que pisa as folhas outonais e se entrega ao novo, num paradoxo que alimenta o cotidiano e afasta a medíocre acomodação. 

Vivo abraçado a uma delas, dessas almas poéticas que nos visitam de vez em quando. Ela me traz recados e uma lata de chouriço do sertão, ainda acreditando que me encontra na infância e que ainda posso provar do doce bizarro e cheio de açúcar, meu preferido na idade tenra e que colei no espelho do tempo com seiva de babosa. Hoje, não. Respondo. Ela recolhe a lata, como se soubesse da limitação que lhe imponho e que se impõe cruelmente a mim. Sigo sem o doce, mas sobrevivo. Sobretudo, vivo, com o auxílio dos meus erros e delírios, que me desautorizam a acomodação. Almas antigas também são almas inquietas. Por isso, cerco-me delas, para me desaquietar. E para percorrer viagem nas fundas águas da inconsciência que aprende e ensina. 

Todas as luas que observo, calado, percebendo a leve presença do sonho atemporal nas circunvizinhanças serenas, são cobertas por brisas azuis que se despregam da terra molhada pela chuva que minguou. Ali, em meio ao misteriosos portais que se abrem e se fecham em lentidão milenar, posso ver o halo de minha alma, também antiga. Ainda assim, há movimento e há força, que se guardam e se soltam em moto-contínuo. Uma fé que incendeia e que move. Nela reside a minha palavra toda. 

Socorrem-nos sempre os devaneios que vêm de longe e o sopro do pensamento sedimentado no tempo e na memória. É imperioso vagar pelo etéreo eterno, não se (a)firmando em chão do qual não se possa sair para outros instantes e lugares. Passear nos mundos interiores e exteriores, com instrumentos de navegação e de investigação, firmando elementos de convicção íntima e formação principiológica do ser. O ser tornado artista. A poesia invadindo. A poesia engolindo o desejo a colheradas sôfregas. Isso que nos mantém – nosso alimento, nosso corpo vivo em alma que se pereniza, como um rio que chega até o norte de nós mesmos. 

Vale o desafio de remar esse barco com mãos firmes e braços fortes. Não desistir da missão poética que a alma nos entrega. Algo que tem sua foz lá nos tempos de que nem os nossos avós nos contam, porque tudo já está contado no sonho mesmo. Tudo no vento. Tudo dentro. Tudo no engenho que nos destina a obra e a firma. A obra não prescinde dessas cores que trazemos no íntimo inextrincável. Dele o nosso retrato se faz. Retrato da alma. A alma que nos constrói, alimenta: anima. 
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Texto publicado no jornal Tribuna do Norte.

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