A minha alma antiga*
(Lívio Oliveira)
São aquelas almas antigas as que nos alimentam os dias na cidade. E
as noites escondidas entre ruas e becos infinitos em intraduzíveis
paralelepípedos e os sons que neles ricocheteiam. São elas, sim.
Incrustadas em homens e mulheres que se movem freneticamente no tempo,
não somente em uma direção. Suas inquietudes produzem perplexidades e
estupores necessários. A inventividade e a lucidez criativa se conciliam
à tradição de pensamento e ambas explodem numa cena nova e, juntas,
formam a crença que revolve e atiça. Almas antigas são almas dispostas
ao passo firme que pisa as folhas outonais e se entrega ao novo, num
paradoxo que alimenta o cotidiano e afasta a medíocre acomodação.
Vivo abraçado a uma delas, dessas almas poéticas que nos visitam de
vez em quando. Ela me traz recados e uma lata de chouriço do sertão,
ainda acreditando que me encontra na infância e que ainda posso provar
do doce bizarro e cheio de açúcar, meu preferido na idade tenra e que
colei no espelho do tempo com seiva de babosa. Hoje, não. Respondo. Ela
recolhe a lata, como se soubesse da limitação que lhe imponho e que se
impõe cruelmente a mim. Sigo sem o doce, mas sobrevivo. Sobretudo, vivo,
com o auxílio dos meus erros e delírios, que me desautorizam a
acomodação. Almas antigas também são almas inquietas. Por isso, cerco-me
delas, para me desaquietar. E para percorrer viagem nas fundas águas da
inconsciência que aprende e ensina.
Todas as luas que observo, calado, percebendo a leve presença do
sonho atemporal nas circunvizinhanças serenas, são cobertas por brisas
azuis que se despregam da terra molhada pela chuva que minguou. Ali, em
meio ao misteriosos portais que se abrem e se fecham em lentidão
milenar, posso ver o halo de minha alma, também antiga. Ainda assim, há
movimento e há força, que se guardam e se soltam em moto-contínuo. Uma
fé que incendeia e que move. Nela reside a minha palavra toda.
Socorrem-nos sempre os devaneios que vêm de longe e o sopro do
pensamento sedimentado no tempo e na memória. É imperioso vagar pelo
etéreo eterno, não se (a)firmando em chão do qual não se possa sair para
outros instantes e lugares. Passear nos mundos interiores e exteriores,
com instrumentos de navegação e de investigação, firmando elementos de
convicção íntima e formação principiológica do ser. O ser tornado
artista. A poesia invadindo. A poesia engolindo o desejo a colheradas
sôfregas. Isso que nos mantém – nosso alimento, nosso corpo vivo em alma
que se pereniza, como um rio que chega até o norte de nós mesmos.
Vale o desafio de remar esse barco com mãos firmes e braços fortes.
Não desistir da missão poética que a alma nos entrega. Algo que tem sua
foz lá nos tempos de que nem os nossos avós nos contam, porque tudo já
está contado no sonho mesmo. Tudo no vento. Tudo dentro. Tudo no engenho
que nos destina a obra e a firma. A obra não prescinde dessas cores que
trazemos no íntimo inextrincável. Dele o nosso retrato se faz. Retrato
da alma. A alma que nos constrói, alimenta: anima.
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Texto publicado no jornal Tribuna do Norte. |
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