quarta-feira, 23 de março de 2016

Hoje: Quarta-feira de trevas







Hoje à tarde, começa o oficio de Trevas, com que nestes dias a Igreja celebra de algum modo, as exéquias do Senhor. Consta este officio de Matinas e Laudes cantadas com antecipação da véspera. Chamam de trevas tal officio, porque pelo fim d’elle apagam-se todas as luzes, em sinal do lucto profundo da Egreja e memoria das trevas que cobriram a terra na morte do Senhor Jesus. Lembra também o apagamento das luzes um facto histórico da bela antiguidade christã. O officio que celebramos pela tarde celebrava-se então durante a noite, e durava até à manhã; como chegasse o dia, apagavam sucessivamente as luzes, já desnecessárias. Colocam-se os círios ou velas sobre um candelabro triangular, quinze ao todo, sete de cada lado e um no meio ou vértice da figura.
Apagam as velas, uma após a outra, uma de cada lado, a começar pela mais inferior, do lado do evangelho, no fim do salmo, até ficar só a do meio, que se conserva acesa.
São de cera amarela taes círios, porque, por antiga tradição, só d’essa cor os usa a Egreja nos funeraes e grandes luctos. O do meio, porém, é de cera branca, porque representa N. S. Jesus-Cristo.
Em chegando o ultimo verso de Benedictus, carregam essa última luz atrás do altar, entretanto que se reza o salmo Miserere e as orações; depois tornam a trazer.
Os outros quatorze círios representam os onze apóstolos e as três Marias; lembra seu apagamento o silencio d’estas, a fuga d’aqueles. Esse rito e figura remontam ao VII século. Com que piedade contemplaram esta eloquente ceremonia tantos christãos nossos antepassados!
Não seja menor a nossa.
Respira o officio de Trevas a mais profunda tristeza. Invitatorio, hinos, Gloria Patri, benção, tudo é suprimido. Só se ouvem quatro vozes:
David que na lyra canta os ultrajes que sofre Jesus, a morte de seu Senhor e seu Filho; Jeremias, que, às magoas igualando o lamento, canta as ruinas de Jerusalem e os tormentos da Victima augusta; a Egreja em acentos enternecidos a chamar os filhos à penitencia: Jerusalem, Jerusalem, converte-te ao Senhor teu Deus!
Finalmente as santa mulheres que acompanharam Jesus desde a Galiléa, e com ele choravam na subida do Calvário. Sua marcha, suas lágrimas e prantos são representados por dois clérigos, que, de joelhos, caminham a cantar os Kyries Eleison, entrecortados de responos e plangentes suspiros.
Não há chefe nem pastor a presidir o officio nestes três dias, que escrito está: Ferirei o pastor, e serão dispersas as ovelhas do rebanho.
Remata o officio um rumor confuso, que lembra o tropel e queda tumultuosa da corte, que, guiada por Judas, veio alta noite, aprisionar o divino Salvador no horto das Oliveiras.

Goffiné, 1925, 10ºedição, pág. 472, instrução sobre o oficio de trevas. O português da época foi mantido.

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